Viagens do Elefante: Tailândia, dia 8

Conta-se que um tigre gigante encontrou na caverna mais grandiosa da montanha, o seu refúgio perfeito. Quando os monges decidiram ocupar o lugar para meditar, o Tigre que rugia quando o Sol se punha atemorizando as populações locais, nunca mais foi avistado.

Desapareceu. Certo é que existem centenas de macacos que resistem por ali e que, de vez em quando, mordem os visitantes, provocando hospitalizações inesperadas. Gosto de pensar que quando atacam, gritam uns para os outros: “esta é pelo tigre que expulsaram, seus humanos sacanas”.

Bom, deixemo-nos de devaneios dignos do realismo mágico. Esta história envolve um templo, um tigre … e, um lance de escadas alucinante . É também sobre o som terrível da morte de uma árvore. Ouvido, pela primeira vez, na vida destas duas viajantes.

Era uma vez uma selva . A selva continha uma montanha repleta de frescas cavernas, onde, muitos anos antes da industrialização, viviam os mais magnânimos animais. Na caverna mais bela e espaçosa, habitava um tigre de porte superior. Um animal gigante que rugia ao pôr do sol, atemorizando as populações locais que o escutavam, muito ao longe e em silêncio. O eco da caverna perfeita, talhada na montanha, um lar oferecido pela mãe natureza ao animal, fazia com que um simples suspiro do bicho alcançasse distâncias descomunais, e fizesse nascer o mito da besta terrível, escondida na gruta. 

Um dia, chegaram os monges, a caverna estava vazia e, por isso, decidiram ocupá-la e dali fazerem ecoar as suas meditações.

Talvez o tigre tenha chegado perto, pressentido o cheiro dos homens, na sua casa. Certo é que nunca mais foi visto. Os monges ergueram-lhe um altar, rasgaram a montanha e para cima, muito para cima, lá no topo da terra mãe, fizeram nascer um templo – onde reluz um Buda portentoso, dourado, como o pelo do Tigre que nunca mais foi avistado. Para lá chegar é preciso subir uma escadaria com 1.237 degraus que nos leva ao cume. Alguns dos degraus da escada têm mais de 30 cm de altura. O topo da escada tem uma elevação de 278 metros. Numa outra área do terreno sagrado, 184 degraus fazem o caminho até à área dos monges que continuam a viver em cavernas.

Mas o comum dos mortais, sobe a escadaria na esperança de encontrar o tigre. E essa viagem é um tratado de solidariedade, superação, introspecção e sentimentos contraditórios, de degrau em degrau, até ao deslumbre final da chegada ao topo – onde a procura do triste tigre nos desvenda a mais luxuriante paisagem de floresta virgem.

Voltemos então aos degraus – que eu e a Joana encarámos com estúpida ingenuidade, achando cá em baixo, que a escalada seria fácil, rindo até dos peregrinos que desciam – nós íamos subir – agarrados uns aos outros, cotados, lavados em suor, parando de degrau em degrau para observarem chocados, as pernas a tremer do esforço, e nós destemidas e parvas, ainda cá em baixo a comentar o exagero da exaustão que testemunhávamos. Pela boca morreria o peixe, como perceberemos um pouco mais à frente nesta história.

 

Começámos então a escalada. Ao degrau 100, já estávamos com os bofes de fora, a tentar controlar a respiração e a tentar disfarçar o pânico evidente mas – porque – raio – é que nos metemos nisto. Quem descia, vencedor, tinha sempre uma palavra de incentivo “you go girls“! Good luck! Keep strong! E nós secretamente a pensar – “isto deve ser mesmo muito difícil para gerar tanta solidariedade entre quem sobe ao engano e quem desce inundado de bons sentimentos.”

Era de facto, muito difícil. A determinada altura, como numa maratona, só nos apetece chorar e desistir. A falta de folgo já não permite conversa e, por isso, estamos a subir escadarias por dentro de nós próprias. Paramos sem nunca sentar, e depois continuamos em silêncio, focadas no próximo degrau “só mais um, vá um depois do outro. Só mais um”, num exercício de auto motivação constante.

Do choro contido às gargalhadas, num ápice de um guincho de um macaco. Alguém que desce e vendo o desespero de quem ainda vai a meio da subida brinca “sorry … it’s closed!” E de repente no mesmo lance de escadas, 4 pessoas de países diferentes a rir agarradas ao corrimão, pernas a rasgar de dor, mas determinadas a chegar lá acima “‘se estas pessoas conseguiram, eu também consigo”.

A escalada é uma lição de persistência, resistência e humildade perante a força da natureza. É uma experiência tão dura e bonita de solidariedade entre humanos, todos na merda para chegar lá acima, mas juntos na caminhada.

Chegámos, por fim, ao cume, 1237 degraus depois, e a recompensa não podia ser mais generosa. Um templo suspenso na floresta densa, uma vista de fazer questionar tudo, um Buda Dourado gigante a abençoar todo o vale, a chuva a cair suave como uma benção, refresca-nos os músculos doridos e a alma. Confunde-se com as lágrimas de alguns visitantes, siderados com intensidade da experiência.

Por lá ficámos quase duas horas, a contemplar. E houve um momento em que no meio do silêncio, um som que não esqueceremos – parecia um trovão, mas em terra, um trovão arrastado e com sopro surdo de uma ventania inexistente. O estrondo sobressaltou toda a gente que estava no templo e olhámos no mesmo sentido, lá para baixo para a floresta densa, onde ainda não habitam homens, onde não há máquinas nem civilização. Tinha acabado de cair uma árvore e não a conseguíamos ver cá de cima, mas pelo barulho que fez ao atingir o solo, devia ser colossal como o tigre que um dia habitara o território. As árvores morrem de pé mas depois de mortas, um dia tombam.

Testemunhar este momento teve o seu quê de tristeza e de mágico ao mesmo tempo. Como se a natureza nos tivesse gritado por ajuda, um alerta, não sei explicar muito bem. 

Depois da subida, a descida. E não pensem que é mais fácil, senhoras e senhores. Lembram-se da malta a descer agarrada às pernas logo no início do texto, e eu e a Joana a rir cá em baixo, zombeteiras? Ah pois é. Era ver-nos – sobretudo eu – a descer, quase de gatas, os lances finais de escadas. Roupa encharcada em suor, corada como um salmão saído do mar, torcida de dores.

Não vi o Tigre, mas não minha cabeça ouvi-o rugir muitas vezes. Gosto de imaginar que de noite, sobe as escadarias do templo e se deita lá em cima, ao pé do Buda, a partilhar com ele o céu estrelado e que se nesse momento uma árvore cair, ele lá estará para a reconfortar. 

Com os macacos claro, aos saltinhos entre as velas e incensos, enfim sós enfim em paz.

A nossa viagem está quase a acabar. ✨

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Texto Rita Ferro Rodrigues
Fotografias Joana Meneses
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3 comentários em “Viagens do Elefante: Tailândia, dia 8

  1. Não é meu hábito comentar, seja o que for nas redes sociais. Mas ao ler estes seus belíssimos textos, sinto-me quase que impelida a fazê-lo. Por momentos sou transportado para esses lugares maravilhosos. As suas palavras prendem a nossa atenção, fazem-nos reflectir, e rir. Não é para todos! Faz-me recordar a ilustre Isabel Allende. Parabéns !

  2. Olá Rita

    Acabei agora de ler o seu blogue da viagem e gostei imenso.
    Eu também vejo a Tailândia como a Rita e achei que muito do que descreveu podia ter sido escrito por mim. Partilho inteiramento dos seus sentimentos com aquele povo. Eu tenho a vantagem de já conseguir comunicar melhor com eles mas é mesmo só essa. Tenho um desafio para lhe fazer e gostava de almoçar consigo novamente. Diga-me quando é que lhe dá jeito?
    Um beijinho

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