O André

Pedi-lhe a entrevista por insistência dos meus filhos: “Mãe, tens de conhecer o Piruka, perceber porque é que gostamos tanto da música dele.”

Tenho dois filhos de 7 e 14 anos e uma filha de 16 e pedi-lhes que me explicassem o motivo de tanta identificação com o artista de 25 anos:

“Ele canta a vida dele com derrotas e vitórias, a vida difícil dele. E canta o amor como nós o vivemos e sentimos. Faz-nos sentir parte de qualquer coisa verdadeira e boa”.


Confesso que fiquei curiosa. Já conhecia vagamente a música do Piruka por imposição dos putos nas viagens de família – e eles a cantar emocionados no banco de trás – sabem as letras de cor e salteado e cantam-nas olhando a paisagem, pensativos, como se aquela vida fosse a deles.

Desafiei o Piruka (por enquanto ainda lhe vou chamar assim) pelo Instagram, a medo. “Olha, gostava muito de te entrevistar.”
Expliquei-lhe a umbilical motivação para o pedido.

Disse-me logo que sim, sem receios.


Vamos lá ver: este miúdo de 25 anos não costuma dar entrevistas, muito menos entrevistas de vida, em vídeo. Não me conhecia nem da esquina. Não vê muita televisão mas alguém disse à mãe Sónia que me tinha visto no Goucha a dizer que gostava de entrevistar o filho. As canções do Piruka somam mais de 35 milhões de visualizações no YouTube, os concertos esgotam em todo o país e vive na estrada (literalmente) com a família profissional que escolheu a dedo para o acompanhar na aventura. No ano passado, mais de 125 concertos, este ano vai bater esse record. A última canção, “Prova dos 9” lançada há menos de uma semana, vai em mais de meio milhão de visualizações no YouTube. São números astronómicos.

Disse-me que sim e lá fui eu, feliz, descobrir um dos ídolos dos meus filhos. Marcámos encontro no Café de família “Aclara”, um presente oferecido pelo Piruka à sua irmã Bruna para que pudesse ter uma vida mais digna e “não fosse tão explorada pelos patrões”.

Cheguei. Apresentaram-me Piruka mas eu vi logo o André. Não que existam muitas diferenças, não existem, senão este sucesso era impossível mas o André para alguém que só conheça as canções do Piruka e a sua presença rebelde no Instagram tem outro lado: é um puto queridíssimo, de sorriso franco e desarmante, cavalheiro, atento e educado. Um chuto nos preconceitos de quem vê nas tatuagens e nos piercings uma sentença de bandidagem. Eu nunca tive esse olhar (basta ver-se com quem casei) mas sabemos que esse rótulo ainda existe.


O André que não fugiu a nenhuma pergunta e que logo na primeira resposta me comove quando de garganta seca e olhos brilhantes, evoca a memória do avô. Como eu, também ele tem uma estrela em forma de saudade que o guia sempre, independentemente do Deus em que acredita, “ser negro, amarelo ou cor de rosa.”

O André que este avô criou “enquanto o pai e a mãe se endireitavam na vida.” As drogas fizeram parte do percurso dos pais do André, a mãe num período muito curto, tratou-se rapidamente e dedicou-se totalmente aos filhos, o pai num caminho muito mais duro e acidentado, limpo há dois anos por promessa ao filho mas sempre em risco de cair de novo no precipício.

O André que “nasceu Betinho” e andou na escola “Amor de Deus” e de repente aterra na Madorna, sem quaisquer defesas, sem hipótese de sobrevivência e “não podia ser peixinho tinha de ser piranha”.

O André que podia ter sido preso por tráfico de haxixe e teria ido dentro se não fosse a intervenção da mãe que durante 3 anos, acumulou dois trabalhos para pagar o empréstimo que pediu ao patrão para que o filho não ficasse atrás das grades. 12 mil euros de caução pela segunda oportunidade do André e uma gratidão eterna do filho que não só a homenageia letra sim, letra não, como a beija e abraça todos os dias e ao colo dela encontra a paz que precisa para seguir seguro e de cabeça levantada o seu caminho.

O André que aos 25 anos de vida já amou muitíssimo mas uma única mulher: a mãe da sua filha e fala sobre esse amor de forma tão desarmante que faz suspirar os corações mais descrentes.

O André que chorou convulsivamente quando a filha nasceu “a tremer todo como um menino” (que é).
Que nunca deixou de ser.

O André que não bebe álcool nem nunca experimentou drogas duras mas fuma erva e pede que o deixem em paz “porque existem drogas legalizadas tão piores e eu não incomodo ninguém”

O André que “só canta aquilo que vive” e canta de olhos fechados em estado de hipnose emocional.

O André que recusou todos os contratos de grandes editoras “para continuar a ser livre” e “trabalhar com aqueles que ama e confia”. E tem uma família em palco, alguns são outros putos como ele, de outros bairros, tocados pela música e pela sensibilidade dele de perceber que entre as ruas e o palco, às vezes a distância está num compasso de oportunidade. Que ele lhes dá “porque sem eles não era nada”. O André que está a criar uma Editora para dar oportunidade aos putos do bairro “se estiverem a fazer música, saem da escola para o estúdio, não se perdem nas ruas”.

O André que me respondeu a tudo com uma honestidade desarmante e me fez confirmar o luxo que é fazermos de facto aquilo que gostamos, sem amarras, sem concessões. Sermos verdadeiros e bons.

O André.

“Eu andei perdido e bati no fundo
Rotina de merda era apenas um puto
Hoje eu perco um minuto na vida para
Não ter de a perder num minuto
Hoje eu tenho a cabeça para cima
A minha velha já me vê com orgulho
Sou completo tenho uma família
Minha Clarinha que é o meu futuro”

Subam o som do Piruka no carro, nas viagens de famílias, vale bem a pena ouvirem as letras com atenção.
Também eu já vejo o André pela janela da vida, sou agora mais uma da seita do bem, mais uma a olhar pensativa para a paisagem.

Este é o André. Piruka para os amigos, ou seja, para todos nós.

No concerto que assisti na Madeira, um miúdo de 9 anos de lágrimas nos olhos pedia-lhe um autógrafo enquanto repetia “Piruka, és o meu melhor amigo”. Isto contou-me o André de coração a transbordar com a força desta declaração.

Sim, filhotes. Agora percebo.

A entrevista, para verem no Elefante de Papel.

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Fotografias: Joana Meneses

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