As mãos

 

Por isso no dia em que ela morreu, quando chegou à igreja, ele não sabia o que fazer às mãos.

Foram juntos no autocarro 30 anos antes. As mãos no mesmo poste, olhares fixos no sinal luminoso de SAÍDA, borboletas no estômago. Sair era uma impossibilidade, pela primeira vez tinham chegado a algum lugar.

As mãos tocaram-se antes de os olhos se atreverem ao encontro. As mãos foram sempre mais corajosas.

Foram elas que descobriram os corpos nus.

Foram elas que se entrelaçaram durante a ecografia do primeiro filho.

Foram elas, todas juntas e de diferentes tamanhos, que deixaram impressões digitais de felicidade nas paredes da casa de família. Foram elas que furaram os bolos de chocolate acabados de sair do forno nas tardes de Inverno de sábado.

Foram elas que comandaram a escrita, de cartas de amor, pedidos de desculpa, listas de compras.

Com elas transpiradas e trémulas abriram o envelope do médico com a sentença de morte.

Com elas cada vez mais frias mas sempre juntas percorreram o caminho vezes sem conta até ao fim. Na maca, na cama, na ambulância, sempre de mãos dadas.

E a morte chegou. Tiveram de se libertar do poste devagarinho.

E por isso ele não sabia o que fazer às mãos.

Dela, pousadas sobre o abdómen, lugar-comum dos mortos.

Dele, inexpressivas, abandonadas, mortas também.

Levou-as aos olhos e encharcou-as de lágrimas.

Depois, tocou pela última vez nas dela e saiu da igreja.

Apanhou o autocarro e durante muitos anos não se lembrou onde saiu naquele dia em que ela morreu.

 

in “Deve Ser Isto O Amor”

Rita Ferro Rodrigues

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