O meu carro anda sempre todo sujo
Publicado a na categoria Memória de Elefante
Esta manhã passei uma vergonhaça das antigas quando, expedita, me decidi a fazer a limpeza mensal da viatura. Um mês dentro do meu carro é muito tempo. Muito tempo mesmo.
Visto-me a preceito para o combate, sim, é de guerra que se trata. Fato de treino, luvas, ténis, cabelo apanhado e óculos escuros (para ver se ninguém percebe que aquele pequeno pardieiro é meu).
Manhã de sol, tudo a correr bem… portas abertas.
Rita a cantarolar enquanto faz a recolha dos vários materiais e espécies raras encontrados na viatura:
Secção dos produtos alimentares:
duas embalagens de iogurte (uma delas lá dentro já trazia um brinde: um pequeno cogumelo);
dois pacotes de bolachas (sem as bolachas, a tempo devoradas pelos pequenos duendes);
uma garrafinha de água;
uma banana preta escondida debaixo do banco (a-marafada-da-miúda-que-me-disse-que-tinha-comido-a-banana-agora-percebo-o-cheiro-misterioso-a-bicho-morto).
Secção de papelaria:
desenhos amachucados e com pegadas de sapato (deve ser uma nova técnica aprendida nas escolas);
duas canetas de feltro, 4 lápis de cera.
Secção bricolage:
um tubo de cola, duas pilhas e um parafuso de plástico.
Secção vestuário/bijuteria:
uma camisola encolhida (deve ter sido do trauma de permanecer num sítio assim);
uma luva;
uma meia azul com riscas rosa (ah estavas aí, desgraçada…?);
uma pulseira de contas… e como as contas estão todas espalhadas no chão do carro, esta senhora que vos escreve está neste momento, literalmente, de rabo para o ar, a apanhar as malditas… e o cantarolar foi substituído por um vociferar entredentes (ai se ela volta a trazer estas porcarias para aqui…).
No passeio, jazem dois sacos, um com tesouros e relíquias encontrados, outro com uma tonelada de lixo.
Mãe de rabo para o ar a vociferar.
Vizinho com voz de gozo precedida de gargalhada estridente:
– Tchiiiiiiiiiii… nunca vi nada assim, ó D. Rita. Precisa de ajuda ou é melhor chamar os serviços da Câmara?
Raios para os óculos escuros que não funcionaram, ai que engraçadinho que este vizinho me saiu… se ele apanhasse mas é o cocó do cãozinho dele da rua fazia melhor.
Rita a tentar parecer composta, gargalhada falsa:
– Aahahahaha muito obrigada, deixe lá, não é preciso ajuda… sabe como é, três miúdos… dá nisto…!
Vizinho, muito rápido:
– Não sei, não, D. Rita, que os meus filhos normalmente não andam no meu carro, andam no da mãe… e quando andam no meu não comem lá dentro e não levam brinquedos, isso… santa paciência!
Rita perde a SANTA, a tal da PACIÊNCIA e responde:
– Olhe, pois, os meus não. Comem, bebem, fazem tudo dentro do carro, imagine… Veja lá que o mais pequeno até tem uma colecção de macacos do nariz colados aqui neste vidro, está a ver? São uns pequenos animais… e eu uma pequena mãe selvagem, um horror. Mas quer acreditar que somos muito felizes? Então um resto de bom dia… sim? E não se esqueça de apanhar o cocozinho do bichano!!
Endireitei-me cheia de dignidade, um saco do lixo em cada mão, óculos escuros todos tortos e cabelo meio desgrenhado e virei costas a sorrir, orgulhosa da minha resposta certeira.
– D. Rita!!! Ó D. Rita!!!
– Sim? – Viro-me eu, altiva, à espera não sei muito bem de quê.
– Tem um cromo colado no rabo. É do Messi, grande jogador de futebol da Selecção Argentina… mas se calhar é melhor tirar…
in “Deve Ser Isto O Amor”
Rita Ferro Rodrigues