O Fado de Gisela João ou como sentir tudo de todas as maneiras

 

Tentar encontrar uma definição universal para o fado será sempre infrutífero. No entanto, Amália tinha, a meu ver, a melhor definição para o que poderá ser o fado, quando cantava “fado é tudo o que digo, mais o que eu não sei dizer”.

Uma coisa é certa: o fado é canção bairrista, é a alma de um povo. Nasceu em Lisboa e exala um sofrimento e uma amargura assumida e, por isso, não é elitista – nunca poderá ser elitista e, se for elitista, não é mais fado.

Considerá-lo um estilo musical é escandalosamente redutor. Se o fado fosse apenas um estilo musical, os que o cantam seriam cantores. No entanto, eu nunca ouvi chamar cantor a alguém que cante o fado. Quem canta o fado é fadista. Noutros tempos existiam as cantadeiras de fados, mas nunca cantoras.

Cada um terá certamente a sua própria definição muito íntima e difícil de transmitir, por isso, os que melhor vão definindo o fado, seja lá o que ele for, são os fadistas, pela forma como o vão cantando. Precisamos de fadistas que nos mostrem o que foi, o que é, e o que poderá ser o fado. E é aqui que se apresenta Gisela João, com toda a genuinidade, humildade, entrega, genialidade e voz grave e vigorosa, que a caracterizam.

A Gisela João tão depressa pega no fado na sua forma mais pura e tradicional, com poemas com todas as estruturas e realces que o caracterizam, como destrói todas essas barreiras que inconscientemente vamos criando na nossa mente, e todas as caixinhas onde estamos habituados a colocar tudo o que nos rodeia, para que seja menos duro viver. E apresenta-nos novas formas de fado, tão peculiares quanto perfeitas e que para surpresa de todos nós, se entranham antes sequer de se estranhar. O melhor exemplo que me ocorre é o da majestosa interpretação do grande clássico mexicano “Llorona”, presente no seu segundo álbum – “Nua”, lançado em 2016 – e que faz todo o sentido nesta nova versão.

Dá-nos valentes estaladões, mas daqueles de mão bem aberta, quando se apresenta com maravilhosas e viscerais interpretações de grandes fados, já muito conhecidos do público, e aquilo sabe a novo. É como se ganhassem todo um novo significado. E, aqui, o termo “interpretação” nunca fez tanto sentido, porque esta senhora, com toda a sua genialidade, pega nesses poemas, com a coragem e a garra que lhe são tão naturais (como se não lhe bastasse ser mulher, ainda é do norte), e só sei que nada me sabe a pouco, tudo me enche as medidas.

A Gisela João traz-nos de volta a humildade que ao fado pertence, e que por vezes se perde na sua exposição contranatura em palcos e plateias de maiores dimensões. Ouvi-la é como estar sentada sozinha no meio de uma sala escura, com um foco sobre mim. É desfrutar desde o primeiro acorde da guitarra ao último grito.

E como se tudo isto não bastasse, do alto da sua humildade, e da qual não sei se se apercebe, ainda nos mostra que, com toda a certeza, não é preciso ter nenhum mestrado para falar sobre fado, e muito menos para cantá-lo, ouvi-lo ou senti-lo. Enfim, tudo vale a pena.

Toda a gente deveria ter o privilégio de, pelo menos uma vez na vida, ser completamente arrebatado, desconcertado, atormentado, confortado, revigorado, deslumbrado, por esta artista. Será seguramente (e como disse o grande Fernando Pessoa), nada menos que “sentir tudo de todas as maneiras, viver tudo de todos os lados, ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo, realizar em si toda a humanidade de todos os momentos num só momento difuso, profuso, completo e longínquo” seja em 75 minutos ou em 4 minutos. 75 minutos recomenda-se. E muito!

Obrigada grande, enorme, Gisela.

Nota sobre a autora

O meu nome é Sofia da Silva e sou estudante.

A escrita proporciona-me uma evolução consciente dos pensamentos.

Escrevo para me elucidar e para me ir livrando dos pensamentos que me povoam a mente, tanto quanto a minha vida e os meus 20 anos me permitam. Podem contactar-me através do meu email.

 

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1 comentário em “O Fado de Gisela João ou como sentir tudo de todas as maneiras

  1. cara, Sofia… falando de talentos… o grande Fernande Pessoa talvez disse-se… “a força do pensamento, ou a genuinidade que nos move, nos acrescenta, para um sentir do tudo, à todo o momento e de todos os lados… ” obrigado… jm

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