Esta é a minha luta: ser doente e ser enfermeira

Sou enfermeira, já o disse. Estou habituada a estar do outro lado. Estudei para isso. Li. Preparei-me. Pratiquei. Errei e aprendi. E voltei a fazê-lo vezes sem conta (espero continuar).

Desde os 18 anos que me deparo com realidades que desconhecia. O nascimento. A morte. O abandono. A degradação. A dependência. A vulnerabilidade do outro. A dor. O sofrimento. Os olhares vazios. Os corpos desprovidos da sua dignidade. As vitórias. As palavras e gestos de agradecimento. O desespero. As famílias. O cansaço. Os silêncios. As perguntas sem resposta. Os conflitos. O Amor pelo Outro. Os que cuidam e os que são cuidados. As partilhas. As noites. As equipas.

Neste ano tenho aprendido a ser doente, a aceitar que estou do outro lado. Desta vez, calhou-me a mim. Aceitar que chegou a hora de ser cuidada e não de cuidar. Mas não é fácil aceitar que perdes parte do controlo e que esse passa a estar do outro lado da fronteira. Recordo-me que estava a fazer os exames pré-operatórios quando pela primeira vez senti esse peso. Estava na sala de espera quando vem uma técnica e pergunta se eu era a doente. Acho que fiquei uns segundos a pensar naquilo e no que havia de responder. Mas acabei por concordar e dizer que sim, era eu. Quando entrei para o exame, a mesma técnica, perguntou-me o motivo pelo qual estava a fazer aquele exame e acho que foi a primeira vez que o disse em voz alta.

Colocarem-me uma pulseira de identificação como doente tornou-se numa rotina mas da primeira vez foi no mínimo estranho. Um gesto que rotineiramente estou habituada a fazer quando estou do outro lado. Algo importante para garantir a segurança do doente. Estava a ser rotulada como a detentora de um problema, publicamente para todos os que estivessem presentes naquela sala.

Aprende-se muito numa sala de espera de oncologia. De início levava um livro para estar ocupada e o tempo passar mais rápido mas fui percebendo que não me conseguia concentrar naquilo. Tenho tropeçado em várias pessoas, várias histórias, todas com um denominador comum. Tenho visto rostos de indignação, de revolta, de aceitação e de luta. Há de tudo. Há os revoltados contra tudo e contra todos, há os que sorriem e aceitam, há os carrancudos, há os que partilham tudo e há os que nunca ouvi a voz. Há histórias de vida, há famílias, há vitórias e há perdas. Mas também há aqueles que cuidam, os que se tornam mecânicos e eficientes e os eficientes e empáticos. São esses que ficam na memória de quem é doente. São esses que procuramos quando precisamos de ver algo esclarecido ou resolvido. Não basta ser-se bom, é preciso ser-se bom e atento. Prefiro os atentos e assim-assim aos bons e descentrados do Outro de quem cuidam.

Durante as minhas idas ao hospital atropelo-me nos meus pensamentos bipolares, por um lado a Irina enfermeira, por outro, a Irina doente. A que sabe o que vai acontecer e a que espera que não ocorra. A que está atenta ao cumprimento dos princípios das técnicas e a que está mais focada em expor as suas dúvidas e as suas preocupações. A que sabe que há informações que são confidenciais e a que questiona os colegas de outros doentes na esperança de encontrar outros na sua situação. A que se revê na correria dos profissionais e a que espera que eles lhe consigam dar atenção. A que percebe a inevitabilidade da dor física em alguns procedimentos e a que gela e sua sem parar nesses momentos. A que se depara e reconhece a burocracia no cuidar e a que se revolta pela desumanização que isso trás aos cuidados. Não há como desligar. Porque são a mesma. As duas fases da mesma moeda.

 

Irina.

 

 

 

 

 

 

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8 comentários em “Esta é a minha luta: ser doente e ser enfermeira

  1. Um lindo e sentido texto. Também sou enfermeira, tem toda a razão por vezes a técnica não caminha lado a lado com a “humanidade” e por vezes é o que os doentes mais precisam, de alguém que os ouça e compreenda. Tudo de bom que as nuvens negras desapareçam.

  2. Sou enfermeira, mas não estou doente. Quando esse dia chegar (porque vai chegar) são as suas palavras que venho buscar.
    Obrigado pela partilha.
    Abraço apertado.

  3. No teu texto, revi-me.
    E é tão raro “conseguirem chegar a mim desta forma”
    Silvia, a enfermeira.
    Silvia, a doente.

    Obrigada Irina

  4. Minha querida jovem. Dizer-lhe para ter coragem é uma redundância sem sentido. Estou, aos 76 anos à espera de uma biópsia à mama esquerda. Não vou falar nisso. A um doente não se fala em doenças. Desejo-lhe do mais fundo do meu coração que se cure. Aprecio muito o vosso trabalho, sou viúva de médico, sei a dedicação dos profissionais de saúde. Fui cuidadora do meu amor, que sofreu de Alzheimer, sozinha. Sou crente, não me leve a mal, que Deus a proteja. O seu testemunho é tão lindo e triste ao mesmo tempo. Um carinhoso abraço. ??

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