Diário de uma Enfermeira quarentona em tempos de pandemia: Parte VIII

Domingo.
Domingo quente.
Domingo quente no Dia da Mãe.
Domingo quente no Dia da Mãe e Dia de Trabalho Pandémico.
Que custou deixar o conforto da minha casa, de deixar o conforto dos abraços das miúdas, neste dia quente, especial e diferente.

Chego ao hospital.
Rotinas já conhecidas.
Entro nos “meus” Cuidados Intensivos.
Serviço deserto. Sem doentes. Só estamos nós os quatro. A minha equipa. Hoje vamos ajudar os nossos colegas dos Cuidados Intermédios COVID-19.

Percorremos os afastados, retos e labirínticos corredores até encontrar o serviço desconhecido (esta nova unidade foi criada para internar pessoas que já não necessitam de cuidados intensivos, mas que ainda não têm requisitos clínicos para estarem nos internamentos, pois requerem ainda uma vigilância apertada).

Na porta diz – Entrada a Profissionais.
Entramos. Os quatro. Motivados. Vestimo-nos como de costume (Fato+máscara+óculos+viseira+2 pares luvas). Siga. Como diriam os comediantes “Já tratamos o vírus por TU”.

Encontramos uma sala larga, grande e luminosa. No centro, computadores onde profissionais, médicos e enfermeiros, fazem registos e à volta, boxes separadas por biombos, onde estão algumas pessoas na cama, outras sentadas em cadeirões. Fomos aos pares. Eu e o Daniel. O Pedro e a Carol.

Dirigimo-nos a uma senhora sentada no cadeirão que pedia para ir para o leito. Tem à volta de 55 anos. Está traqueostomizada (após vários dias conectados a ventiladores a estratégia passa por, cirurgicamente, realizar uma abertura na traqueia do doente onde se coloca uma cânula, um tubo, por onde passarão a respirar, servindo para um desmame ventilatório mais rápido, que poderá ser temporário).

D. Fátima (nome fictício) vamos levantar? E colocamo-la de pé. Ela ajuda. Dá uns passinhos e deitamo-la na cama. E apercebo-me, através da minha visão enevoada pela viseira, que ela chora. Não sei se chora por medo. Não sei se chora por dor. Não sei se chora por vergonha. Não sei se chora por tristeza. Não sei se chora por raiva ou por angústia.

Sei que chora por medo de morrer. Chora por dor no corpo que pouco mexe. Chora por vergonha de ter duas pessoas desconhecidas que lhe mudam a fralda. Chora por tristeza de não ter os filhos ao seu lado neste Dia da Mãe. Chora por raiva de ter ficado infetada e por angústia de não conseguir falar o que lhe vai na alma.

Damos-lhe a mão e acarinhamos-lhe o cabelo. Reconheço-a pelo verniz das unhas. Digo ao Daniel que a D. Fátima esteve na nossa cama 3 dos Cuidados Intensivos.

Não chore D. Fátima. Nós somos os enfermeiros dos Cuidados Intensivos. Cuidámos de si quando esteve lá. A senhora não se lembra pois esteve alguns dias sedada mas o pior já passou. Já respira sozinha e esse tubo na garganta vai sair e, mais dia menos dia, está em casa. Acredite em nós. Tem que acreditar.

E repito. O pior já passou. E aperto-lhe a mão. E alivio-lhe a dor que ela diz, por gestos, que tem na garganta, com um paracetamol endovenoso.
Deitamo-la como ela gosta. Aspiramos as secreções. Coloquei-lhe creme nas mãos e pernas. Tento dar-lhe uma gelatina pela boca, que ela recusa.

Tem que comer D. Fátima! Engula. Eu sei que dói mas tem que fazer um esforço. Pois se comer é mais um passo em direção a casa. E consegui que ela comesse. Coloquei-lhe a máscara. Desejei-lhe felicidades e repeti que vai correr tudo bem e fiz-lhe uma festa na face.

Quando virei costas senti os olhos humedecidos e o nó na garganta. E o meu pensamento pairou nas pessoas que eu sei que vão prevaricar, desrespeitar e violar a liberdade de outros nesta fase de calamidade. Essas pessoas têm que perceber que ainda estão muitas D. Fátimas em cadeirões dos hospitais. A não saberem que hoje é o Dia da Mãe. A não poderem ter os filhos na visita da tarde. A chorarem por não saberem que hoje é Dia da Mãe.

Não tive coragem de lhe dizer.

Nota sobre a autora

Chamo-me Joana. Tenho 40 anos e sou muitas coisas… filha, irmã, enfermeira, formadora…mas a mais difícil de todas… sou Mãe, Boadrasta e Mulher. Escrevo para libertar o que me vai cá dentro…

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3 comentários em “Diário de uma Enfermeira quarentona em tempos de pandemia: Parte VIII

  1. Gratidão p’ seu amável, dedicado, sincero e comovente testemunho! Faz mt bem em descrever o q lhe vai na alma. A sua alma fica mais leve, a nós, faz-nos acreditar e confiar q não estamos sós. O mundo precisa de amor! Obrigada

  2. Apenas espectacular a forma como descreves tão bem o que te vai na alma
    Nasceste para seres enfermeira
    Bem haja pessoas como tu
    Beijocas

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