Diário de uma Enfermeira quarentona em tempos de pandemia: Parte VI

E o inevitável acontece.
O óbito. Um dos óbitos deste País e deste meu Mundo.
Óbito sereno. Tranquilo. Em que os anjos já se encontram, a algum tempo, lado a lado do corpo, à espera do som que tudo leva, aquele som, daquele monitor, de que quem trabalha conhece de cor.

Nestes meus 20 anos de trabalho não consigo contabilizar as vezes que dei a mão direita a quem os anjos iriam levar. Uma dezena? Duas dezenas? Talvez. Não sei. São aqueles momentos que, eu, nós, enfermeiros, não queremos que fiquem retidos pela memória. Prestar cuidados pós mortem são cuidados calados, são cuidados pesados, são cuidados mortos de compaixão, em que o olhar fica baço e a mão, que passa pela última vez no corpo já esfriado, treme. Poderão avançar mais 20 anos e vai ser sempre assim.

Mas este óbito. Nestes tempos de hoje sente-se de outra forma. É documentável. Todo o mundo o testemunha. Representa um número que aparece no visor da televisão quando bate as vinte horas. A D. Ermelinda (nome fictício) é somada a mais trinta e dois corpos portugueses levados por anjos. E mais quatrocentas e vinte e duas D. Ermelindas que sucumbiram do outro lado da fronteira. E mais quinhentas e seis D. Ermelindas em Itália. E mais… em França. E mais na América… E mais… É uma conta de somar mas também de subtrair que não alcança fim.

Mas o pior momento deste ritual não me cabe a mim. Cabe ao médico. Pega no telefone e procura um local silencioso, dentro de alarmes de monitores e máquinas perfusoras, dentro de enfermeiros que pedem compressas e aspiram secreções enquanto os ventiladores não se calam, dentro de uma arena em que as auxiliares, constantemente, passam desinfetante. A hora é de silêncio. De respeito absoluto pela morte, por aquela morte. Por todas estas mortes em tempos de pandemia.

D. Cristina (nome fictício), fala o médico dos Cuidados Intensivos, a sua mãe acabou de falecer. Frase curta. Frase simples. Apenas com um sujeito, dois verbos. Não existe outra forma de o dizer. Não há floreados de palavras e conjugação de adjetivos. A morte é assim. Nua e crua. E solitária.

Do outro lado, o choro. Sufocado. Gritante pela clausura. Desesperado da perda.

Esta filha está num tempo em que não lhe foi permitido (horas antes de os anjos tomarem aquela que a colocou neste mundo) dar a mão direita pela última vez. De sussurrar ao ouvido da sua querida mãe o quanto a ama e o quão vai ser difícil continuar a viver… neste e nos futuros tempos.

São mortes sem tempo para despedidas. Só existem telefonemas de alguém que, com a voz rouca de emoção, só consegue dizer: “ela não sofreu” , como forma de consolo, enquanto enfermeiros encerram pálpebras com a mão trémula.

Como se fosse possível consolar todas as filhas Cristinas deste planeta impedidas de dizer um “Até Breve, minha doce mãe”, beijando a sua testa, ainda morna.

Nota Sobre a Autora

Chamo-me Joana. Tenho 40 anos e sou muitas coisas… filha, irmã, enfermeira, formadora…mas a mais difícil de todas… sou Mãe, Boadrasta e Mulher. Escrevo para libertar o que me vai cá dentro…

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11 comentários em “Diário de uma Enfermeira quarentona em tempos de pandemia: Parte VI

  1. Bom dia amiga,
    Os teus sentimentos passaram para escrita virtual,carregados de uma forte emoção.
    Bem Hajas
    Beijinhos
    Paula

  2. Aqui está a tal inimaginável coragem de que só as “Joanas” desta saga dispõem …
    Será ainda, sequer, justo continuar a pedir-vos mais? …
    Mas, e sem vocês? Se não pedirmos, o que será de todos nós?

  3. Parabéns Joana por mais um excelente artigo! Transcreves na perfeição o que todos sentimos..
    No meio deste caos, há coisas boas que acontecem, e uma delas foi os nossos caminhos se terem cruzado, e de agora estar a trabalhar com uma excelente profissional e pessoa ??

  4. Como sempre extraordinária !!!
    Mais un texto brilhante ? Tu és incrível minha Joaninha .
    Que Deus te guarde sempre ??❤️
    Beijinho enorme ?
    E um forte xi de coração ?

  5. Lindo e arrepiante minha querida! ???
    Obrigada por ainda teres força interior para descreveres o que sentes e vives diariamente!! Um bem haja ,por tudo o que tens feito por todos esses anjos perfeitos!!??❤️

  6. Que grande tristeza Sra Enfermeira como é possível viver assim no meio de tanta dor e como devo ser difícil dizer a uma filha que sua mãe morreu de covid que essa filha nem sequer se vai poder despedir nem um último beijo vai dar na sua mãe Muito triste . Obrigada Sra Enfermeira pelo carinho que têm por essas pessoas …

  7. Escrever é uma arte.

    Transmitir sentimentos com palavras é um dom.

    Prestar cuidados de saúde, neste cenário atípico, com este grau de altruísmo é sobrenatural.

    Que todas as ‘D. Ermelinda’ tenham uma ‘Joana’.

    De uma ‘filha Cristina’, de outros cenários, para a minha querida Joana, FORÇA.

  8. Lindo JOANA só quem está de corpo e alma entregues absorve todas estas emoções. ❤️Concerteza a maior aprendizagem de toda uma vida se é que está pode se contabilizar
    Um abraço e que nos preencha com tamanhas palavras ao coração de cada um de nós
    Enfermeira Paula Machado
    Uca espinho

  9. Mais uma vez brilhante a tua descrição do que se passa quando este triste desfecho acontece.
    Tudo o que fizeram pelo doente de certeza que foi com o melhor profissionalismo de quem sabe cuidar
    Um chi muito apertado e coragem
    Beijinhos

  10. Palavras de alma tão verdadeiras tão sofridas..
    É um exemplo Sra Enfermeira … Os Anjos Caminham entre nós conosco. O amor até à eternidade ..
    Paz Luz e serenidade Deus a guarde .Sempre ?

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