Diário de uma Enfermeira quarentona em tempos de pandemia: Parte IV

Mais um dia….
Mais doze horas.
Mais uma volta neste carrossel que gostava que avariasse de vez e que se transformasse no belo carrossel que se encontra perto da Torre Eiffel (que bom que era podia estar a passear em Paris…).

Os doentes continuam muito doentes. Não evoluem. Estão parados num tempo medonho. Impasse. Sedados. Analgesiados. Parados. Os valores do oxigénio e do dióxido de carbono são maus o que significa que a pneumonia não está melhor.

A média de idades é de 65 anos e, ao contrário do que se ouve nas notícias que a maior parte dos infetados internados nos Cuidados Intensivos têm várias comorbilidades, não é verdade. A maior parte eram saudáveis, autónomos, tinham a suas profissões tendo apenas a Hipertensão Arterial como doença comum.

Cuidados de higiene e conforto. Pele vigiada para despiste de qualquer lesão que possa aparecer pelo estado inerte. Massagem com creme nos locais de maior risco. Aspiradas secreções. Trocados filtros e sistemas. Trocados cateteres. Administrados os fármacos. Administrada a alimentação pela sonda que vai do nariz ao estômago. Alterados os parâmetros do ventilador. Alterado o posicionamento no leito. Colheita de sangue, urina, pontas de cateteres, secreções para análise… tenta-se perceber o que nos está a escapar… porque não melhoram? Já estão internados há mais de 4 dias e deveriam estar a dar sinais positivos…

Febre. Hipotensão. Os rins ressentem-se. O estômago deixa de tolerar os líquidos que os alimentam. A imagem do raios x está pior.

Das doze horas, passaram oito. Dentro daquele fato de astronauta. Daquela “bolha” de Doença. Apercebo-me da lentidão dos meus movimentos e do meu raciocínio. Existem tartarugas mais rápidas. Noutras circunstâncias, aquelas oito horas seriam quatro mas o cansaço, o calor, a transpiração, a dor na face que me tortura não está para ajudar.

O turno está a acabar. Falta uma hora. Dispo-me daquela panóplia de equipamentos e quedo e preciso de ar fresco e saio daquela sala e entro no espaço das refeições e abro a janela e enfio a cara no outro Mundo e fico com os olhos embaciados e apercebo-me que ainda não liguei às minhas filhas (ligo sempre duas vezes por dia e já são sete da tarde)…

O objetivo de hoje está alcançado. Ninguém sucumbiu nas minhas mãos. Nas nossas mãos.

Nota sobre a autora

Chamo-me Joana. Tenho 40 anos e sou muitas coisas… filha, irmã, enfermeira, formadora…mas a mais difícil de todas… sou Mãe, Boadrasta e Mulher. Escrevo para libertar o que me vai cá dentro…

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10 comentários em “Diário de uma Enfermeira quarentona em tempos de pandemia: Parte IV

  1. Como Pais sentimos um enorme orgulho em ti como sabes sempre estivemos contigo e continuaremos a estar nestas horas dificeis para todos os Profissionais que estão no olho do furacao o nosso bem hajam
    Mas podes crer que iremos vencer este tsunami
    Beijinho estamos contigo porque te adoramos te
    Cuida te
    Até sempre

  2. Obrigada Enf. Joana
    Que bonito testemunho mas ao mesmo tempo tão triste!
    Que difícil deve ser trabalhar com este inimigo que não se vê!
    Admiro-vos muito!
    Sempre vos dei o real valor !
    Deus vos proteja , a si Joana e a todos com quem trabalha!
    Um beijo , um abraço,
    Obrigada ?
    Maria Eugénia Castanheira

  3. Sinto-me sufocada só de ler a sua escrita ! Penso que não pode ser possível ,tanto sofrimento .Mas pode e existe ! Olha você aí para provar que existe até mais que isso tudo ! Peço a Deus ,muita força a você e proteção pois ANJOS assim é difícil de se encontrar.Que Deus te abençoe e te dê muita luz !

  4. Muito orgulho na minha Joaninha! A pensar em si com muita força, fé e esperança que logo estejamos juntas nas sempre animadas tardes de bloco 🙂

  5. Tu és um anjo na terra minha Joaninha , a tua escrita é linda , como eu já te disse adoro ler te , o calor do teu coração aquece a alma, a tua dedicação levanta o ânimo o teu sorriso alegra o coração o teu carinho faz muita diferença o teu toque transmite energia. Por isso, tu és uma dádiva de Deus na vida daqueles que precisam da tua dedicação.
    Admiração e orgulho é o que sinto ❤️Que Deus ilumine sempre tua vida.??
    Bem aja a ti e a todos que estão na linha da frente ?

  6. Olá Joana,
    A sua escrita parece-me, porque o é, tão tristemente genuína que me trespassa.
    Por vezes pergunto-me como posso gostar tanto de “a” ler… mas a verdade é que estou sempre à espera da sua atualização.
    Sinto que “lê-la” é o que no mínimo posso e devo fazer em homenagem e em modo de agradecimento a todos os profissionais de saúde que estão na linha da frente a “dar o corpo ao vírus” por todos nós… sim porque qualquer um pode estar, ou vir a estar, nesse papel de moribundo à mercê da vossa Grandeza, da vossa Coragem e da vossa Teimosia em salvar cada um.
    ???

  7. A verdade nua e crua do combate ao Covid19 na linha da frente. O meu obrigado a todos os componentes de saúde. Espero que, no fim, sem demagogias, olhem para a vossa condição salarial que é indigna para quem desempenha tão difícil e importante função para a população em geral.
    Vamos vencer.

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