Diário de uma Enfermeira quarentona em tempos de pandemia: Parte II

Dia seguinte.
Estaciono. Tiro a mochila. Coloco a máscara. Subo a rampa. 35,5oC. 3o andar. Passo a linha vermelha que separa a área Não Covid para a área Covid. Coloco no rosto os óculos de proteção e a máscara FP2. O nariz já dói. Mazelas do dia anterior…. Mas… Siga…

Encontro os meus colegas que estiveram a trabalhar de noite ansiosos por transmitirem as informações dos doentes a quem chega. Querem ir embora. Repousar o corpo… Não sei se vão conseguir dormir porque a adrenalina que percorre as veias de quem trabalha nesta pandemia não diminui, mesmo deitados num sofá.

Percorro as camas e reparo que são as mesmas oito pessoas do dia anterior mas com uma diferença: sete continuam a respirar com a ajuda dos milagrosos ventiladores e uma… É nela que os meus olhos, mal chegados, se focam e, é nela que os meus colegas que fizeram noite nos dizem, com os olhares cheios de emoção e orgulho: o Sr Paulo (nome fictício) respira sozinho!

Apesar de lá fora estar a chover, aqui dentro o sol brilha pois o nosso esforço começa a fazer sentido.

Procedo ao ritual que agora faz parte da minha nova vida. Máscara FP2. Fato completo. Óculos de proteção. Viseira. 2 pares de luvas. Bata de proteção. Hoje não falta nada.

Dirijo-me ao Sr. Paulo, 57 anos (idade real) ansiosamente feliz! Ele olha para mim com dificuldade pois a máscara que, também ele, tem que usar não facilita uma troca de olhares nítida. Dou-lhe a mão esquerda e apercebo-me que a música que vinha a ouvir no carro é a banda sonora deste momento (“Heal the World, make it a better place” ) e reparo que o polegar e o indicador da mão direita estão entrelaçados. O Sr Paulo faz figas. A ansiedade e o medo dele transcende o meu. O pavor da morte deve ser um arranha céus mas, a SORTE que ele tanto pede repousa nos seus pulmões curados.

Com a minha mão direita na mão esquerda dele, aproximo-me do seu ouvido e, com a voz embargada pelo nó na garganta, digo-lhe:

– Está curado! O pior já passou! VAI CORRER TUDO BEM!
Ele acena com a cabeça a dizer que sim. Aperta-me a mão. E a lágrima, que não devia cair pois os homens não choram, aparece.

– Vamos transferi-lo para o internamento. Mais uns dias e irá para casa.

E assim foi.
Para despedida enfermeiros, médicos e auxiliares batemos palmas. Ao Sr. Paulo. A nós. A todos os Senhores Paulos deste Mundo.

Ao jantar, ao ver nas noticias a estatística dos 46 curados daquele dia, conhecia um deles…

Nota sobre a autora

Chamo-me Joana. Tenho 40 anos e sou muitas coisas… filha, irmã, enfermeira, formadora…mas a mais difícil de todas… sou Mãe, Boadrasta e Mulher. Escrevo para libertar o que me vai cá dentro…

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13 comentários em “Diário de uma Enfermeira quarentona em tempos de pandemia: Parte II

  1. Sem fôlego de emoção, porque sou das privilegiadas que ainda respiro por mim, inspiro essa lufada de esperança que viajou no seu testemunho, em palavras, até mim.
    Obrigada

  2. Joana, força muita força, admiro a coragem, tenho pena de não ter competências para vos puder ajudar, bjs grandes ❤️ ? ? ?

  3. A joaninha é uma pessoa incrível
    Boa profissional, competente, é
    Mãe,mulher, irmã,filha, sempre pronta ajudar todos, tenho a sorte de a conhecer e lhe poder chamar amiga ♥️ bem ajam todos os que se entregam á sua profissão, como a enfermeira Joana Teixeira sempre o fez,?♥️?

  4. Muitos parabéns por tão bem descreve esta emoção que assim seja e que existam muito mais historia como esta que nos faz a todos acreditar que vai ficar tudo bem…????
    Um grande bem haja a si joana e a todos os profissionais de saúde ….❤❤

  5. Boa Joaninha , gratificante ver o resultado dos vossos sacrifícios, como o S. Paulo, vão aparecer muitos, PARABENS a toda equipa…força e coragem para todos, beij

  6. Amiga
    Que Deus te abençoe a ti a aos outros profissionais que contigo, diariamente, ajudam a diminuir o sofrimento daqueles que tratas
    Bem hajam

  7. Querida amiga
    É com emoção qje li o teu relato que bem retrata o dia daquele que cuida dos outros com paixão, entrega e profissionalismo.
    Dia a dia fazes aquilo que mais gostas e ajudas muitas pessoas no seu sofrimento.
    Bem hajas assim como outros profissionais que ajudam a travar esta luta difícil.
    Deus vos abençoe

  8. Minha linda Joana . Minha amiga de anos, hoje sinto te irma de coração . Tens gestos que me enternecem . Vamos ver muitos “ Paulos “ e pela vida fora, não sairemos iguais desta luta. Mas dos fracos não reza a história. Fica na nossa história de vida esta marca . Somos orgulho para nós mesmos porque só a nós nos enriquece, só a nós nos fortalece como pessoas que por acaso somos enfermeiras . Não precisamos que se orgulhem de nós, pois não ????? Adoro te ??????

  9. Continuação do seu diário emoção… esperando boas notícias e desejando qie Deus a tds abençoe e dê à ciencia Luz. Mta saude para si e família. Até amanhã ??

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