A vida depois do Covid

Nestes dias que tenho passado em casa tenho tido tempo para pensar. Tenho a certeza que o tempo contribui sempre para grandes reflexões. Por um lado, a reflexão inevitável sobre um tempo muito difícil que ainda está por vir. Por outro, a esperança de que, quando isto passar, a vida vai ser ainda melhor do que já era.

Costumam dizer que depois da tempestade vem a bonança. E também costumam dizer que só damos valor às coisas quando as perdemos. Acho que somos, no geral, pessoas ingratas. Porque está a chover e queremos um dia de sol. Porque está um dia de sol e afinal a chuva faz falta. Porque passamos o dia fora de casa e estamos muito cansados. Porque não temos trabalho e passamos o dia em casa. Porque nunca mais é sexta. Porque temos de ir às compras. As coisas mais simples, precisamente por nos pareceram tão simples, são dadas como adquiridas. E acabamos por nos esquecer que são presentes que vamos recebendo uns atrás dos outros.

Talvez agora a gratidão renasça em nós. Talvez comecemos a dar mais valor a coisas que até agora nos pareciam mínimas. Talvez comecemos a perceber que a felicidade também se constrói sobre a simplicidade. Acho que, depois disto, desta guerra, do que lhe queiram chamar, nada vai voltar a ser igual. Nada pode voltar a ser igual.

Vamos perceber que poder ir às compras à vontade não é um sacrifício, mas uma sorte. Vamos perceber que ter prateleiras cheias, algo que nos parece tão banal que achamos que as coisas vão lá parar sozinhas, é fruto de um trabalho tão importante como os outros todos.

Tenho esperança de que nada seja igual. Tenho esperança de que, depois disto, finalmente percebamos que não somos nada sozinhos. Tenho esperança de que, agora que todos a sentimos, percebamos que a dor do outro não nos pode ser alheia. Tenho esperança de que percebamos que não precisamos de grandes luxos, mas que a riqueza se constrói muito para lá disso. Tenho esperança, muita, de que, algures no meio da tempestade, nos tornemos pessoas mais gratas. E que, algures nos meio da tempestade, nos tornemos pessoas melhores.

Talvez renasça ou cresça em nós a certeza de que a vida é um presente. As festas também vão ser celebrações interiores e a possibilidade de estar com os amigos vai relembrar-nos que o amor é o que nos salva, sempre. O toque, o beijo e o abraço vão ser ainda mais sentidos. Vão trazer à memória a alegria de estarmos juntos, de estarmos todos, de nos olharmos nos olhos. Vão relembrar-nos de como as pessoas, os nossos, os de sempre, são o nosso bem mais precioso.

Talvez o pôr do sol não se torne mais bonito, mas a oportunidade de o vermos da praia, do miradouro, do jardim vai ter uma beleza acrescida. Os passeios vão ser ainda mais apreciados e os parques cheios de crianças vão lembrar-nos que o caminho se constrói sempre de olhos postos na esperança.

Talvez percebamos que os profissionais de saúde e tantos outros não são heróis apenas agora, mas sempre. Foram ontem, são hoje e estou certa de que continuarão a ser amanhã. Espero que não nos esqueçamos disso, que não nos falte a memória quando tudo isto passar.

Quero acreditar que poder ir ver os meu avós livremente, ouvir aquela história que já ouvi dezenas de vezes e repetir-lhes a mesma coisa tantas outras vai renovar em mim a certeza de que serão, para sempre, os colos para onde hei de sempre voltar. Ainda que um dia já não me possa sentar neles.

Quero acreditar que os jantares de domingo em família me vão soar ainda mais a casa, porque hão de ser sempre a minha.  Faça chuva ou faça sol.

Tenho muita esperança de que, algures no meio da tempestade, nos tornemos pessoas mais humanas, mais humildes. Quero muito acreditar que vamos sair disto e perceber que andar de mão dada, mesmo quando não podemos, é sempre o melhor caminho.

 Algures depois da tempestade, vamos saber que os dias bonitos nunca são uma construção do eu, mas do nós.

Nota sobre a autora

Marta Pires

Tenho 20 anos e sou aluna de Ciências de Comunicação da Universidade do Porto.

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16 comentários em “A vida depois do Covid

  1. Excelente pensamento . Assim possamos concretizar e ter estes pensamentos sem continuar a olhar somente para o nosso umbigo. Mta saúde e sorte

  2. Uma apreciação de esperança numa alteração profunda da natureza humana, que, para além de bem escrita é uma nota de recomendação a todos. Ficará dado o recado.

  3. gostei
    Mas admiro a sua fé na humanidade. Estou no grupo de maior risco e, de tanto ouvir sobre a parte que os idosos representam nisto tudo ( em vez do inverso) talvez já não vá ter o privilégio de ver esse tal mundo pós covide. A verdade é q penso q a natureza humana depressa esquecerá e continuará alegremente a ser egoísta e centrada no prazer. E continuará a haver excepções , também.

  4. Bonita reflexão, Marta! Tal como tu acredito que nada será igual no futuro… Tens vinte anos,cheios de sonhos e de esperança e nos meus mais de setenta anos , gostaria de os poder partilhar com os meus filhos e netos!…Espero sinceramente que todos façamos o que é necessário fazer e que este horrível momento se torne apenas lembrança em breve! Que os teus sonhos se tornem realidade!

  5. Uma mensagem de esperança que deveria ser interiorizada por todos nós, para que quando a tempestade passar, não nos esqueçamos de continuar a dar valor às pequenas coisas que agora não podemos viver mas que tanta falta nos fazem. Um bem haja e que todos juntos saibamos lutar para vencer esta guerra.

  6. Pessoalmente,
    Não poderei dizer o mesmo.
    Estou continuando a trabalhar.
    No centro de acolhimento de crianças.
    Quarenta só em dias de folgas,!

  7. Bonita reflexão, Marta. E com 20 anos ,tens o futuro todo por cumprir…Se essa reflexão se estender a todos os seres que nos rodeiam ,sem exclusões ,sejam de que género forem, PARABÉNS ! És uma querida !

  8. Marta

    Fiquei bastante comovido com o texto , mas não só! A questão de ter 20 anos e conseguir ter está lucidez daquilo que é importante na vida é realmente uma inspiração.

    Beijo e continue a escrever o que lhe vai na alma, pois vale a pena ler e pôr os pés no chão.

  9. Boa noite Marta Pires. Este é de facto o tempo de olharmos para dentro de todos nós e percebermos que nada vai continuar a ser como antes e o mundo tem que mudar a partir de mim, de si e de todos quantos podermos fazer parte desta história incrível que estamos a viver. Adorei o seu texto que me fez reportar para trás e perceber algumas coisas e me transporta para a frente e me lembra que tudo vai ser necessáriamente diferente. Futuro hoje significa muito mais amor, mais paz, mais vida em comunidade, mais partilha, mais valorização dos que vivem ao nosso lado e daquilo que é realmente essencial à vida de todos nós. Abraço enorme para si

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