Viagens do Elefante: Tailândia, dia 4

 
Talvez por ser a despedida de Bangkok, dia de transição e de mais uma viagem, a saudade dos meus atingiu-me de repente, como uma bala perdida. Acordámos ainda em Bangkok, muito estranhamente às 11h30 da manhã hora local. Dormimos 11 horas de seguida, o corpo a pedir descanso do jet lag violento, da maratona de quilómetros do dia anterior e o coração, pela primeira vez, a processar a distância no mapa daqueles que estão em Lisboa e, como escrevia o O’Neill estão comigo 
“nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver”
 
Entre a saída apressada para o aeroporto (onde apanhámos o voo para Krabi) a saudade tão tuga e descabida (ridícula para qualquer outro viajante mas que tantos que me estão a ler percebem e identificam) e a certeza de que esta viagem marca muito mais do que um caminho feito – é o The End da tal “vírgula maníaca” do tal “modo funcionário de viver”. Estou na continuação do texto depois do salto no escuro, do abandono da segurança e da estabilidade profissional de anos, tantas vezes infeliz, tantas vezes questionada.

Em quase silêncio até ao aeroporto com a companheira de viagem perfeita – a Joana – fotógrafa talentosíssima que nesta aventura passa de profissional a amiga – a Joana que me capta na imagem e que me conhece a alegria e speed constante, já se apercebeu da necessidade pontual de introspecção, de me alhear do plano das coisas reais.

São assim como urgências de silêncio e de recolhimento que chegam muitas vezes sem pré-aviso. Quando o momento passa, a Joana viajante baixa a máquina fotográfica e faz-me as perguntas certas – a raça da miúda – que me fazem abrir caixinhas de memórias na cabeça, acender luzes antigas e coisas bonitas.

No telefone, as mensagens da Vera (que, como um pêndulo muito preciso, sabe sempre onde está o meu coração, independentemente do lugar para onde a bússola mais imediata das aparências aponte), a Jess sempre preocupada e atenta (Chegaste bem? Como estás? Estás a gostar?) a Fernanda a fazer likes descontroladamente nas minhas fotografias e a escrever “odeio-te” em todas as legendas e eu a sentir a sua gargalhada enquanto tecla. A voz (casa) do Rúben – “esqueceste-te de pagar a conta do gás, estamos cheios de frio em Lisboa, mas que se lixe tenho tanto orgulho em ti, está tudo bem, o frigorífico velho ainda está no meio da cozinha, o Duda está constipado mas sempre feliz, diverte-te e, olha, as Capazes ganharam o prémio, eu que odeio redes sociais até partilhei, amo-te e mais beijos”. A Leonor adolescente no WhatsApp, “tenho saudades tuas mãe querida, fazes-me falta, aproveita, mereces, adeus tenho uma aula”. O Duda mais tarde em vídeo-chamada, muito penteado e agasalhado a tomar o pequeno almoço, a engolir as lágrimas de saudades na mesma colher dos cereais e a fazer o sinal de fixe para não ter de falar e eu não perceber que lhe faço falta – meu amor pequenino e protector. O meu pai, a minha mãe e os meus manos no grupo de família, sempre em misto de claque de amor e crítica certeira que sorte que tenho em tê-los sempre à perna.

 
As viagens são muito mais do que o que projectamos e vemos no mapa. Esta, até pela distância e pelo desapego que me impus ao meus – está a ser determinante. Estou muito feliz, não me entendam mal. Apenas muito mais consciente do amor que tenho na vida. Como se passando para um outro lado do espelho, me tivesse visto de repente inteira e imperfeita, nítida.
 
O voo para Krabi foi tranquilo, a chegada ao hostel Bliss Krabi aplacou-me de qualquer réstia de angústia. Crianças Thai a brincar na rua mal abri a porta do transfer, (cerca de 30km até ao aeroporto, 14 euros sensivelmente) voilá, escolhemos o lugar certo. Com a boleia de ida e volta já incluído no preço final, um quarto duplo, em cima da praia (o mar está a 100 metros e enquanto escrevo ouço as ondas a rebentar) 5 noites (via booking) com pequeno-almoço, são sensivelmente, 550 euros. Os quartos são pequenas “cabanas” mas com todo o conforto, wi-fi, ar condicionado, mini-bar, muito simples mas espaçosos e bonitos. E com pormenores deliciosos: a cesta de artesanato local com as toalhas para levar para a praia, as flores frescas que nos dão as boas vindas assim como um prato com bananas (deixem-me dizer-vos que, aos 42 anos, percebi que não sabia o que era uma banana deliciosa até ter provado estas).
 
 
Podemos jantar em qualquer restaurante na praia por 10 euros por pessoa, um pouco mais caro do que a street food de Bangkok porque estamos numa área mais turística mas os mesmos sabores maravilhosos. Comi uma sopa de peixe que me vai ficar para sempre na memória. Nos próximos dias exploraremos as redondezas e procuraremos embrenhar-nos nas povoações aqui por perto, procurando lugares diferentes para jantar e almoçar (e conviver com a população local).
 
Ao jantar logo à chegada, numa conversa telegráfica com o rapaz que nos servia, ser de sensibilidade apurada, olhou para mim e percebeu onde me encontrava – não percebeu quem sou, no sentido mais profundo e filosófico de quem somos, mas viu-me. Percebeu-me o ritmo dos passos e por isso amanhã bem cedo, apanhamos um barco pequeno – sugestão dele – em vez de um outro grande carregados de turistas.
 
 
“Ma’am, you don’t like crowd , Isn’t it? You prefer peace. Boat for two. Better for you”. Inglês simples, sem floreados. Comunicar é fácil assim nos queiramos ouvir. Assim nos queiramos chegar perto dos outros com amor. A versão menos poética deste episódio é que é extremamente possível que ele ganhe uma percentagem de dinheiro por arranjar clientes para o tal pescador do barco romântico just for two, but who cares? Vamos pagar menos do que no barco da maralha, that’s a fact.
 
Yes love”, respondi. Boat for two. Peace.
E será no “boat for two” de um pescador local que vamos dar uma volta pelas ilhas paradisíacas circundantes e, claro, como tudo nesta viagem, vamos mais uma vez dar uma volta por nós próprias. Desta vez com o mar como detonador de emoções.
 
O O’Neil começa, o O’Neil termina:
 
“Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal”
 
*
Amanhã conto como foi. E um Adeus (português) meu, da Joana e da chuva que cai neste momento, torrencial e quente, – e que delícia que é senti-la nos pés, no cabelo, e perceber-me ensopada e aliviada, como se o nó que me travava a garganta, tivesse finalmente desatado, através do céu de Krabi.
 
Powered by
Texto Rita Ferro Rodrigues
Fotografias Joana Meneses
 
 
Partilhe nas Redes Sociais
FacebookTwitterPinterest

2 comentários em “Viagens do Elefante: Tailândia, dia 4

Deixe uma resposta

* Campos obrigatórios