Viagens do Elefante: Tailândia, dia 3

 
Monges em jejum, templos e palácios estonteantes, duas mulheres à deriva em Bangkok. Este foi o dia em que andámos mais de 20km a pé e comemos (por menos de 3 euros) os melhores manjares das nossas vidas. E também foi o dia em que nos encontrámos, apesar de, aparentemente, nos termos perdido.
 
Ao terceiro dia da nossa viagem, acordámos às 5h da manhã para uma experiência diferente de espiritualidade e humildade: as oferendas aos monges.
 
 
Ser monge na Tailândia é um requisito social muito importante e que se reflecte num exercício do Budismo com características diferentes de outros países em que a maioria da população pratica esta religião. A Tailândia apresenta-se como um estado laico mas o budismo é praticado por 95% das pessoas.
 
Todo os homens “que se querem decentes e válidos” devem passar algum tempo pela vida monástica e estudar em profundidade o Budismo. Quando atingem os 20 anos essa pressão começa a surgir e é-lhes exigido social e culturalmente uma experiência monástica de tempo indeterminado. Cada monge pode escolher se quer ficar nessa condição para o resto da vida ou apenas uns dias, semanas ou meses. Culturalmente, todos os homens querem ser monges por 3 ordens de razão:

 – desenvolvimento pessoal e espiritual/crescimento emocional e intelectual;
 – créditos para casamento: se não forem monges têm mais dificuldade em casar-se porque as mulheres não os consideram “bons homens”;
 – glória para a família: o facto de serem monges beneficia, credibiliza e honra os pais e a família do monge em geral.

Então e as mulheres, (perguntam vocês)? As mulheres – como em todas as outras religiões do mundo – não fazem parte da equação. Não podem ser monjas, não podem fazer parte da estrutura organizativa e política budista.
 
Voltando à nossa alvorada, tinha um objectivo claro: o encontro com os monges de Marble Temple Bangkok para lhes oferecer o pequeno-almoço. Este encontro acontece na área exterior do templo onde eles vivem.
 
Os monges só comem duas vezes por dia (de manhã e ao final da tarde) e dependem das ofertas da comunidade para se alimentarem. Faz parte da prática de despojamento, partilha e humildade que o Budismo ensina.
 
Chegadas a Marble Temple, já os monges se alinhavam tranquilos e sorridentes (imagino que cheios de fome) para receber as oferendas. Levámos sumos, frutas e bolos e como nós, alguma população local apresentava-se com embrulhos nas mãos. Os alimentos passam para o colo dos monges que nos abençoam demostrando a sua gratidão. Ao pé de nós, algumas pessoas doentes – um senhor em cadeira de rodas acompanhado pelo filho que, depois da benção, limpou as lágrimas e seguiu empurrando a cadeira do pai.
 
Na nossa vez, e depois de abençoada, perguntei se podíamos registar o momento, se a Joana podia tirar uma fotografia. O monge que me calhou em sorte acedeu habituado ao pedido mas disse-me de forma clara que não lhe podia tocar, que não podia haver qualquer contacto físico entre nós, durante os segundos do disparo da máquina. “Por eu ser mulher?” – perguntei. “Sim” respondeu com um sorriso tímido.

 

 
 
 
Já com os alforges carregados, os monges voltam a formar uma fila ordeira e como uma centopeia laranja, desaparecem para dentro do templo para cumprirem a primeira refeição do dia e nós, ainda meio estremunhadas pela hora, seguimos para o Wat Arun de barco (templo do amanhecer) onde tivemos de esperar uma hora até que abrisse as portas aos visitantes.
 
O Wat Arun é um templo emblemático de Bangkok no lado Thin Buri do rio Chao Phraya. A vantagem de termos entrado tão cedo é que estava quase vazio, o que já não aconteceu no Palácio Real (de que vos falarei mais à frente).
 
O principal motivo de interesse de Wat Arun passa pelo pagode gigante de quase 80 metros – o “ Phra Prang” que está ladeado por quatro pagodes menores. Incrustado em porcelanas variadas que brilham ao Sol, o tempo do Amanhecer ganha a luz mais bela, curiosamente, ao entardecer, quando os reflexos do pôr-do-sol se espelham nos ladrilhos das porcelanas, provocando um efeito caleidoscópio deslumbrante. Está aberto das 7.30 às 18 horas e as entradas custam 3 euros (cerca de 100 baht), aliás, este é o preço médio de visita de todos os templos. O melhor transporte é o barco – atraca à porta e é, como já sabem, muito barato.
 
 

 

 
De Wat Arun embarcamos para o Palácio Real, paragem obrigatória de todos os turistas, e por isso, muito cheio. Não há quem não queira observar os magníficos templos de imensa riqueza e diversidade arquitectónica e o Wat Phra Kaeo, a casa do Buda Esmeralda – a imagem budista mais idolatrada na Tailândia. Vale a pena a visita – um regalo para a vista – mas, do ponto de vista da paz e introspecção que procuramos num lugar de culto, é para esquecer. Encontrámos esse lugar mais à frente. Já vos conto.
 
De barco de novo e depois de sky train, embrenhamos no centro financeiro e tecnológico de Ratchaprasong, andámos quilómetros a pé a descobrir uma área da cidade muito mais moderna e urbana mas à mesma com um templo a espreitar em cada esquina. Mesmo no meio do bulício do trabalho a população Thai tem sempre tempo para uma oração ou uma oferenda ao Buda. Neste distrito, é muito interessante como se cruza a tradição e a história com a tecnologia e a urbanidade, sem conflitos.
 
 
 
Almoçámos divinalmente e literalmente debaixo da ponte, num boteco descoberto ao acaso enquanto calcorreávamos as ruas desta Bangkok agora despida de turistas, fervilhante de trânsito (as motas formam cobertores na estrada e cobrem inteiramente o asfalto), inebriante de cores e cheiro a especiarias e picante que nos desperta os sentidos a cada esquina.
 
 
De novo uma viagem de barco, destino: o quarteirão chinês ou Chinatown em Yaowarat lugar que vale, definitivamente, a pena visitar. Um labirinto de comércio, com ruelas apinhadas de tecidos, roupas e todo o tipo de iguarias da gastronomia chinesa para experimentar. Aqui concentra-se também um grande número de lojas de venda de ouro a preços muito competitivo. Estas lojas estão marcadas a vermelho e Dourado.
 
 
 
Decidimos sair a pé do mundo chinês e caminhar sem destino pelas ruas de Bangkok. Por esta altura já tínhamos nos pés mais de 15km de passeata e foi num pequeno jardim que recarregámos baterias assistindo ao final do dia de muitas famílias Thai, fazendo desporto, passeando os animais, convivendo e aproveitando a natureza circundante.
 
Mochilas de novo às costas, o entardecer recebe-nos à deriva pela cidade, as pernas começam a assinalar o esforço e os pés com uma bolha ou outra da praxe. No meio de uma enorme avenida, um templo vazio, portas abertas e uma luz dourada e reluzente lá dentro a convidar-nos para entrar. Sem sabermos, estávamos em Wat Suthat, célebre pela imagem principal do Buda, Phra Si Sakayamuni originalmente moldada em 1238. Oito metros de altura, dourada e imponente, é considerada uma das mais belas imagens do Buda da Tailândia. O templo estava vazio. Apenas um grupo de monges e duas pessoas a fazer as suas orações. Tirámos os chinelos (que por esta altura já nos torturavam os pés) e sentámo-nos em silêncio, cada uma na sua viagem interior, de olhos fechados, verdadeiramente inundadas pela paz do lugar, naquele que foi o nosso primeiro momento imersivo numa espiritualidade que não procurámos mas que nos encontrou, ao entardecer, talvez pelas defesas de consciência fragilizadas pelo cansaço. Foi o melhor momento do nosso dia que terminou com uma excelente refeição reconfortante, uma conversa íntima só possível entre viajantes e uma merecida massagem tailandesa nos pés, nas costas e sobretudo na alma – que este país mexe com a nossa e de que maneira.

 
Um dia tão mágico como extenuante – andámos mais de 20 km a pé com as mochilas às costas e os corações ao alto. Caídas na cama dormimos 11h, já a sonhar com o dia seguinte em que nos despedimos da nossa queridíssima e apaixonante Bangkok e seguimos para Krabi, no Sul da Tailândia, para mais aventuras.
 
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Texto Rita Ferro Rodrigues
Fotografias Joana Meneses
 
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1 comentário em “Viagens do Elefante: Tailândia, dia 3

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