Vendi um sonho

Vendi um sonho. Um sonho que não era meu. Não me pertencia. Pensei que o pudesse viver mas também não tive forças (ou vontade) para o fazer. Tive finalmente a coragem de o vender com a certeza que alguém o vai viver por mim. Por nós. E nada, mesmo nada, acontece por acaso.

Demorei 14 anos e cerca de 4 meses até ter a coragem de vender a roulotte do meu irmão. Comprou-a meses antes de morrer. Demorei também anos até conseguir falar e escrever sobre a morte do meu irmão com a clareza da verdade e a dor que as palavras só por si carregam. Usou-a cerca de um mês antes de ter o acidente. Acidente – foi com este termo que durante muito tempo me referi ao dia da morte do meu irmão.

Comprou-a usada, fez-lhe remodelações e usou-a apenas para umas férias no Algarve. É injusto dizer que a usou apenas para umas férias para o Algarve. É bem mais justo dizer que sonhou ter uma roulotte e realizou o seu sonho. Sonho agora que eu vendi por não o conseguir viver por ele. Estive 14 anos e cerca de 4 meses até conseguir abrir a porta da roulotte. Entrei apenas no dia em que a vendi. Mostrei-a apenas a uma família. Uma família cuja história se une à minha por razões que ambas preferíamos que nunca tivessem acontecido. Uma família que sonhou e realizou o sonho de ter uma roulotte e que a estacionou no Parque de Campismo de uma das praias que o meu irmão também frequentava.

Ligaram-me hoje. Encontraram lá dentro um canivete do meu irmão, gostaram dele e acharam que deveria ser eu a ficar com ele. Não consigo explicar a saudade que este telefonema me trouxe hoje e o quanto quero passar para guardar o canivete e poder dar-lhes um abraço pelo gesto que tiveram comigo. Não soubessem tão bem, também eles, as memórias que um objeto pessoal consegue carregar consigo.

Eu já tinha falado sobre isso. Sobre o mexer no que não nos pertence. Sobre o que acontece às nossas coisas depois de morrermos. Coisas que na verdade já não são nossas porque se não vivemos, não existimos, não sonhamos, não somos donos de nada. Nem da morte. Porque essa então não é pertença de ninguém. Acredito antes que com a morte nos transformamos em memórias. E saudade. Ficamos vivos nas memórias dos que nos fazem viver através da sua saudade.

É isto o meu blogue. É também outras coisas. Mas é muita da saudade que trago e que hoje chegou sob a forma de um canivete. Saudade que aprendi a aliviar assim, com palavras que muitas vezes só a mim fazem sentido. Porque se escrever é remexer na dor é também liberta-la da saudade dos dias.

Notas sobre a autora 

Patrícia Costa Mateiro

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3 comentários em “Vendi um sonho

  1. Muito bonito, e sentido em cada palavra. Faz este ano, 4 anos que também perdi uma das pessoas mais importantes da minha vida, o meu menino de apenas 21 aninhos de acidente também ele, dormi um mês com uma camisola dele por baixo da minha almofada, com o cheiro dele, sim uma peça de roupa por lavar…
    Vive- se dias, meses, até anos a tentar aceitar o inaceitável, contra natura quando se trata de um jovem cheio de garra trabalhador e com uma vida cheia de projectos pela frente.
    O meu filho do coração, o meu Carlinhos, sobrinho e afilhado… Ficou tanto por dizer, e foi dissemos tanto um ao outro nesse ano, até falamos nesta triste e cruel despedida eterna, sim incredulamente falámos na sua morte um mês e uns dias antes… Dificilmente a vida voltará a ser como era… Ainda cheiro aquela peça de roupa, hoje onde mora a dor é a saudade.

  2. Não consigo imaginar o sofrimento de perder um irmão.O texto está lindo e trouxe-me lágrimas aos olhos. Muita força!

  3. É um texto emotivo e repleto de amor e saudade mas ao mesmo tempo sereno e de aceitação daquilo que apesar do enorme amor, não conseguimos evitar.
    Também eu perdi o meu irmão há precisamente 14 anos e sei o quão duro é revistar as memórias, aliás, o meu irmão habita todos os meus dias mas tenho ainda hoje, muita dificuldade em tocar as coisas que o traduzem.

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