Tomás: o fabricante de sapatos

Que nunca deixemos de ser crianças.

O Inverno: rigoroso, exigente e enregelado, tinha chegado há muito poucos dias, logo após o Natal. Era a estação do ano que o pequeno Tomás menos gostava por causa da falta do sol, dos dias frios, como a neve, cinzentos e sem graça e do pai o obrigar a levantar-se muito cedo: pelas madrugadas, quando as estrelas ainda abrilhantavam o enegrecido céu noturno, mesmo se estivesse doente. Tomás não tinha direito a queixar-se com dores ou a ficar em casa se adoecesse, o hospital mais próximo ficava a quilómetros de distância, os pais não tinham carro, não podiam deixar o trabalho e os autocarros eram caros e escassos; aliás, ainda há bem pouco tempo tinha adoecido com uma forte constipação. Tinha febre alta, calafrios, dores de cabeça e garganta; Tomás só queria ficar na cama, no entanto, ele sabia que não podia, que tinha que ir trabalhar para ajudar os pais, caso contrário, o pai zangava-se com ele. E assim foi… De ar visivelmente doente e com poucas horas de sono, Tomás vestiu o único casaco que tinha e fez-se ao caminho, a pé, com os pais para a fábrica e para mais um dia de trabalho.

Tomás era um miúdo profundamente triste e cansado: devido à falta de horas de sono que não compensavam o número excessivo de horas de trabalho, de olheiras fundas e olhar triste e amargurado com a vida, desnutrido e demasiado magro para a sua idade, devido à fraca alimentação e tinha pele flácida e amarelecida. Para além disso, era um miúdo carente de afetos e de amor, uma realidade que ele só conhecia de vez em quando, no seu aniversário. Nem se lembrava do dia em que fazia anos, sabia que nesse dia tinha direito a um beijo da mãe e as umas palavras meigas do pai.

A família sempre viveu com muitas dificuldades e a escassez de trabalho era evidente, por isso, Tomás, desde muito cedo que, ajudava os pais na única fábrica de sapatos existente. Tinham horas para começar; mas não tinham horas para acabar, não adiantava a Tomás queixar-se do cansaço ou da fome que sentia; pois, tanto ele como os pais só comiam quando o patrão dava ordem e só regressavam a casa quando o número de pares de sapatos prontos a serem vendidos, era satisfatório. Para além daquele ser um trabalho repetitivo, era também um trabalho demasiado cansativo, exigente e até perigoso para uma criança como Tomás; pois, os sapatos eram todos cosidos à mão com a ajuda de afiadas agulhas. Com apenas onze anos, ele já tinha as mãos bem marcadas das diversas picadas que por vezes dava quando se distraía, recordava-se perfeitamente da postura severa e da voz autoritária do pai:

— Andas sempre com a cabeça na lua, meu mandrião! Não consegues dar dois pontos certos… Vai depressa lavar as mãos antes que sujes os sapatos.

Tomás nem abria a boca, limitava-se a levantar-se do seu lugar, a virar costas ao pai e a ir rapidamente a uma casa-de-banho improvisada: onde não havia uma sanita; mas sim, um buraco, onde as torneiras dos velhos e partidos lavatórios muitas vezes estavam avariadas e não deitavam água, onde a única janela existente estava partida em mil pedaços, lavar as mãos, fazendo desaparecer as singelas gotas de sangue como o sopro do vento. Não lhe adiantava ripostar sob pena de levar um sermão do pai e ser fortemente punido pela sua ousadia, ficando sem jantar. Depois, num surdo silêncio, regressava ao seu posto de trabalho, fazendo por se concentrar ao máximo, fintando fomes e duros cansaços. Tomás não gostava de ser criança; pois, tinha a certeza absoluta que as crianças não deviam levar uma vida tão dura e madrasta quanto a que ele levava e ansiava por poder crescer e ser adulto para poder mudar de vida. De certa forma, Tomás não se conseguia aperceber que, aos poucos, se estava a transformar num adulto à força. Infelizmente, era a lei da vida, em lugares onde os direitos mais básicos de uma criança não eram respeitados.

O pequeno Tomás não sabia o que significava o termo brincar: aquele momento em que uma criança tem, simplesmente, tempo para si, para se divertir: com os seus brinquedos, para ver o seu programa de televisão preferido ou para saltar, correr e jogar à bola, ao ar livre, para esquecer o mundo que a rodeia e viver no seu mundo, num mundo à parte. Ele era obrigado a lidar, todos os dias, com a realidade nua e crua da vida dos adultos, a fazer coisas das quais não gostava, a fazer escolhas que não queria fazer e a tomar decisões para as quais ainda era demasiado jovem.

Tomás também não sabia o que era ir para a escola; aliás não conhecia ninguém da sua idade que andasse na escola; isso, no lugar onde ele vivia não existia. Não sabia ler nem escrever; no entanto, para ele, isso nem importava muito porque para o seu trabalho apenas precisava de uma boa coordenação das mãos e mais nada. Dispensavam-se as letras, o papel e a caneta.

Também não tinha direito a proteção, por vezes, o patrão vinha maldisposto para a fábrica e quando alguma coisa corria mal, as culpas recaíam quase sempre sobre ele; porque era o mais novo, o mais frágil, o menos ágil e o menos atento. Os pais nem sempre compreendiam, as suas falhas e distrações e muito menos o facto de ele ser só uma simples criança, repreendiam-no amargamente, refletindo o forte medo que sentiam de virem a perder o trabalho que lhes dava algum (ainda que pouco) sustento e que lhes colocava algum alimento na mesa.

Achavam que ele devia ter as mesmas responsabilidades que um adulto e que ser também responsabilizado pelos seus erros.

Tinha acabado mais um dia de trabalho duro para Tomás. Pronto para dormir, ele pensava na quadra natalícia que havia terminado, não tinha consciência do que isso era, mais uma vez, tinha-lhe passado ao lado. Para ele, Natal era chegar à noite com meia dúzia de moedas no bolso, fruto do trabalho escravo de mais de doze horas, muitas vezes seguidas. Cada par de sapatos pronto a ser vendido custava-lhe quinze cêntimos; por isso, se fizesse cem pares, ao fim do dia recebia quinze euros. Para Tomás, isso era uma fortuna que lhe permitia ter uma comida melhor ou quem sabe um banho quente ou até uma peça de roupa nova. Não conhecia a realidade onde eram inseridas as árvores de Natal, as decorações, as músicas típicas da quadra, os pais-natais, o bolo-rei, as rabanadas e os presentes de Natal. Era só mais um dia de trabalho, igual a todos os outros.

Para ele, Natal eram todos aqueles dias bons que por vezes aconteciam na sua vida, ainda que raros: dias de muito trabalho, mais cansativos, mas também mais compensadores; dias de comida mais avantajada, de muitas horas de sono e em que os pais sorriam e não o repreendiam. O melhor Natal para Tomás seria o dia em que ele fosse uma criança feliz.

Nota sobre a autora:

Nome: Ana Ribeiro

Idade: 32 anos

Ocupação: escritora e bloguer

Motivação para a escrita: A escrita é o que sou. É a minha casa.

Contactos: [email protected]

Facebook: anaribeiroautora

Instagram: anaribeiroautora

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1 comentário em “Tomás: o fabricante de sapatos

  1. Um texto que é uma chapada sem mãos. Para muitos de nós que temos o conforto de uma casa e o aconchego de uma família, por vezes esquecemos a dura realidade de muitas crianças que não têm a oportunidade de ser crianças. E todas as crianças deveriam ser crianças. Nós nunca deveríamos perder a criança que temos em nós. Uma grande reflexão!!

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