This Is America (mas não só)

Não é a minha voz a mais importante de ouvir agora. Não sou eu que sofro de racismo diariamente. Não sou eu quem já foi vítima de brutalidade policial. Mas se tenho o privilégio branco de poder falar, devia fazê-lo. Se calhar, no dia 25 de maio de 2020, quando George Floyd foi assassinado brutalmente pela polícia, eu não saberia o que dizer, mas agora sei. Todos deveriam ter algo a dizer. Mas é normal que não saibamos o quê, principalmente quem não sofre com o racismo. O que não é normal é que não queiramos entender e desviemos o olhar porque é desconfortável. Todos devíamos estar desconfortáveis. Uma das ações mais importantes a tomar numa altura como esta é aprender. Aprender porque é que os protestos começaram. Aprender porque é que todos estão zangados e porque é que é normal. Aprender que não se trata unicamente de brutalidade policial, trata-se do racismo sistémico que é um problema nos Estados Unidos da América, provavelmente desde a sua criação enquanto país. Mas desengane-se quem acredita que este é só um problema americano ou que só acontece para aqueles lados. Muito pelo contrário. Acontece no mundo inteiro. Desengane-se também quem acha que Portugal não é um país racista. Quem acha que Portugal não é um país racista com certeza não tem prestado muita atenção ou está tão protegido que não conhece a realidade do seu país. Quando somos confrontados com este tipo de situações, que deviam chocar toda a gente, é importante que nos informemos e que mudemos o nosso comportamento a partir daí. Isto não importa só quando o hashtag Black Lives Matter é tendência nas redes sociais. Porque quando deixar de ser tendência para nós, continuará a ser uma realidade para outros. É por isso, para que a partir daqui alguma coisa mude, que gostava de partilhar o que tenho aprendido ao longo deste tempo.

Em primeiro lugar, para aqueles que em resposta a Black Lives Matter escolhem ripostar com All Lives Matter, não o façam. Claro que todas as vidas importam, mas não é a vida branca que está a ser posta em perigo e em causa, e que o é há séculos. São as vidas negras que são constantemente discriminadas fruto da ignorância e do preconceito. Por isso, são as vidas negras que precisam de importar para, aos olhos de todos, valerem o que sempre valeram: o mesmo que qualquer outra vida.

O racismo sistémico consiste num tipo de racismo que já está impregnado na sociedade. Qualquer pessoa já teve uma atitude racista e isso vê-se nos mais pequenos pormenores, desde assumir alguma coisa em relação a alguém só pela cor da pele, a fazer aquela piada que “não magoa ninguém”. Mas já pararam para perguntar porquê? E porque é que nunca a questionámos? Eram os brancos que tinham escravos e lhes batiam com chicotes, mas isso todos escolhemos esquecer, está no passado. Mas o problema é que não está. A maior parte da população prisional nos Estados Unidos é afro-americana. Não, não é porque são todos criminosos, é porque, em muitos casos, são condenados sem provas, são condenados inocentemente, são condenados com sentenças muito mais elevadas das apropriadas para o crime que cometeram. Nas prisões dos Estados Unidos da América, há uma nova forma de escravatura, permitida pela Constituição americana. Em muitas prisões, os reclusos são força de trabalho não remunerada. De acordo com a Constituição americana a escravatura está abolida, bem como os trabalhos esforçados, exceto “pela punição de um crime pelo qual o réu tenha sido devidamente condenado” (ver o filme 13th).

Pior do que os que foram presos injustamente, são aqueles que foram mortos só porque sim. Aqueles que tinham um ar suspeito, sinónimo de uma cor de pele mais escura. Aqueles que levaram tiros, mas não tinham armas. Aqueles que foram vítimas do ódio. Como não estar farto? Como não estar indignado? Mas, mesmo desta forma, mesmo com medo, a vida continua. Para os brancos, provavelmente continuará como sempre. Porque a luta de qualquer negro pelos seus objetivos é maior do que a de qualquer branco. Sim, os brancos também têm dificuldades na vida, mais uma vez, a questão não é essa. Não, ninguém tem nada de mão beijada, mas os brancos começaram a corrida muito à frente. Martin Luther King disse: “For it is obvious that if a man is entering the starting line in a race 300 years after another man, the first would have to some impossible feat in order to catch up with his fellow runner” (para perceber melhor ver o vídeo indicado em baixo). Mas mesmo assim, há vezes em que conseguem acompanhar a corrida dos brancos e ultrapassá-los.

Por muito que os negros façam para atingirem certos níveis de riqueza e bem-estar, o seu passado joga sempre contra eles. Um passado de opressão. Neste caso, joga muito contra todos os que são pobres. Os afro-americanos não ganham o mesmo que os brancos, a disparidade salarial racial é muito elevada. Só aí, a pergunta “porquê?” é a primeira que me surge e a resposta não existe, porque o ato está errado. Nos EUA, uma das maneiras de garantir a riqueza é através da propriedade, direito que os negros só ganharam no fim da Guerra Civil Americana (1865). Foram destacados terrenos para serem destinados às famílias negras. Com o assassinato do presidente Lincoln, o processo retrocedeu e muitos dos que já tinham direito a terras foram expulsos. Para além disso, os bairros e zonas onde essas terras estavam não eram nas mesmas dos brancos, porque os preços das casas nos bairros brancos iriam diminuir se uma família negra se mudasse para lá e ninguém estava disposto a correr esse risco. Por isso, os negros ficaram remetidos a bairros pobres com decrescida possibilidade e qualidade de ensino, por exemplo. Para além disso, uma casa que passasse de geração em geração ia aumentar de valor. Contudo, esse valor é consideravelmente mais elevado nas casas dos bairros brancos, pois são zonas com melhores condições e melhor educação, do que as casas nos bairros tipicamente negros. Isto mantém-se até hoje. Claro que existiram muitos progressos e muitas conquistas, mas isso não significa que não continue a existir a necessidade de mudança. Não significa que muitos negros ainda comecem a corrida muito atrás dos brancos (ver documentário na Netflix “Resumindo: A Disparidade Salarial Racial”). Esta é uma forma de racismo sistémico.

Muitos de nós recorremos com facilidade à polícia quando precisamos da sua ajuda e proteção, sem medo que disparem contra nós pela cor da nossa pele. Isso é um privilégio que nem todos têm. Os nossos pais nunca tiveram de nos ensinar que se um polícia se dirigir até nós temos de avisar que não estamos armados. Os nossos pais não nos ensinaram a ter cuidado com a polícia, ensinaram-nos a confiar nela. Os nossos pais nunca tiveram de nos explicar porque é que alguém, nosso conhecido ou não, foi morto na rua sem sentido. Os nossos pais nunca tiveram medo de sair à rua e encontrar um polícia, sabendo que não cometeram nenhum crime. Os nossos pais nunca tiveram de nos ensinar a dizer: “Don’t shoot”. Isto é um privilégio. Mas não é uma realidade para todos.

Claro que sabemos que nem todos os polícias são assim, por isso não é a esses que os protestos se dirigem, talvez apenas para que se coloquem ao lado dos protestantes e protestem eles também contra um problema da sua profissão. Este é o momento para estarmos todos lado a lado e esquecermos os interesses maiores. Porque o único interesse maior aqui é a luta contra o racismo.

O problema do racismo está enraizado naquilo que somos há séculos. Naquilo que ensinamos. Às vezes está inconsciente, e é importante consciencializar e conversar. O ódio não é racional e talvez por isso seja tão difícil de desaprender, logo nunca deve ser ensinado. O que se está a passar nos Estados Unidos e um pouco por todo o mundo não pode ser uma questão de opinião. É uma questão de direitos humanos. Todos temos de ser contra a violência policial e o racismo. Mas se tantas pessoas se incomodam com a violência dos protestos, como é que não se incomodam com a violência dos polícias? Barack Obama relembra que os EUA foram formados com protestos. Os protestos não são violência. São barulho. E o barulho incomoda sempre. O barulho de quem tem as vozes silenciadas há demasiado tempo. O barulho de apoio que o branco privilegiado percebeu que podia ajudar. Se as pessoas estão mais preocupadas com a forma com que se protesta do que com a razão dos protestos, há algo que está errado. Os piores são aqueles que se recusam a aprender e se ofendem quando dizem algo inapropriado e são corrigidos. Essa não é a solução. Não é o momento para ter o orgulho ferido, é o momento para tentar perceber aquilo que todos fazemos de forma errada diariamente e corrigir os comportamentos. Ninguém nasce ensinado e não há problema nisso, mas temos culpa quando nos recusamos a entender o ponto de vista do outro porque achamos que temos razão. É importante procurarmos informação e não ficarmos somente dependentes daquilo que nos dizem, porque a este ponto já aprendemos que os meios de comunicação não nos dizem tudo.

Este não é só um problema americano e quanto mais rapidamente nos apercebermos disso, mais rapidamente conseguiremos evitar que se torne tão grave em Portugal. Não ignoremos só porque achamos que se passa só do outro lado do oceano.

Mas não é a minha voz que importa. Por isso, para que isto não seja apenas mais um hashtag, apenas mais um movimento, mas para que seja o ponto de viragem para que alcancemos a igualdade que já devia existir e para que não voltemos atrás, recomendo alguns vídeos que podem ser acedidos no Instagram e séries curtas para ver. A educação sobre este tema é o que vai permitir que ele não se repita. É o que vai tornar um movimento numa revolução, e uma revolução numa mudança que terá de ser sistémica e estrutural, pois o problema também o é. É o que vai permitir que mais ninguém tenha de implorar para conseguir respirar. Porque quando menos esperamos, será no nosso país que uma ação semelhante será gravada. Sim, “This Is America”, mas não só. Faço aqui o meu apelo para que se informem e não tenham medo de ter conversas desconfortáveis. Tornem as palavras em ações e não esqueçam o assunto até ele ser resolvido. Falar sobre os assuntos pode ter mais importância do que se pensa. Não estou a tentar ensinar ninguém, nem dar lições de moral, porque no fundo, o que é que eu sei? Porque não é a minha voz que interessa, acedam aos vídeos, e ouçam as vozes de quem interessa.

Para consultar:

Discriminação em Portugal (vídeo): https://observador.pt/programas/atualidade/acontece-todos-os-dias-dez-pessoas-contam-episodios-de-discriminacao-em-portugal/

Racismo em Portugal: https://www.comunidadeculturaearte.com/racismo-em-portugal-compilacao-de-recursos-e-referencias-para-perceber-e-combater-o-racismo-portugues/

National Resources List for Black Lives Matter: https://linktr.ee/NationalResourcesList

Black Lives Matter (destaco a visualização do vídeo número 4 e número 6, pois são aqueles a que me refiro, mas é importante ver tudo): https://www.instagram.com/zoesugg/guide/blm/17845903751178016/?igshid=1k8bbu5b8adqq

Como ajudar: https://blacklivesmatters.carrd.co/

Jovem no Instagram: https://www.instagram.com/p/CA_fDfbh15v/

Resumindo: A Discriminação Salarial Racial (Netflix)

13th (Netflix)

Who Killed Malcom X? (Netflix)

Maria Inês Marques

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