Ser enfermeiro em Portugal

2020 é o ano do enfermeiro. Não sou eu que o digo. É a Organização Mundial de Saúde. Entenda-se, a maior, a mais reconhecida, e a mais relevante instituição da área da saúde a nível mundial. Alguma razão deverá ter para este reconhecimento. Parece-me. E por cá? Qual a reconhecimento nacional desta classe profissional? Os licenciados mais mal pagos do país. Está claro que o salário não é o único sinal de reconhecimento e de respeito que se pode pôr em marcha. Mas se nos virarmos para a vertente do reconhecimento social e institucional a coisa ainda fica mais feia. É mesmo melhor não irmos por aí. Culpa nossa também. E muita. Mas mais à frente já volto a este ponto.

Ora vamos começar pelo início. Sou enfermeira há 15 anos. Durante o meu percurso profissional tenho tentado investir na minha formação. Vários cursos de curta duração, incontáveis congressos e conferências, dois mestrados e uma especialidade. 8 Anos da minha vida. Mais coisa menos coisa. Um percurso relativamente linear para quem está nestas andanças. Uma verdadeira ginástica financeira. Ter que fazer contas à vida (literalmente) para me poder atirar a estes desafios. Retirar voluntariamente algo a mim e à minha família. Tempo e dinheiro que podiam ser investidos em nós. Mas que trocamos por vocês. Porque respiramos este sentido de missão. E os que nos acompanham percebem isso. Aceitam e orgulham-se.

Um malabarismo diário, entre vida familiar, turnos e escola. Sentir-me uma mãe, uma mulher, uma filha, uma tia …negligentes. Por não estar presente quando devia. Quando era expectável. Quando queria.  Quando devia.

Se as horas que investi foram contabilizadas para o meu horário? Não.

Se recebi algum incentivo ou ajuda financeira para investir nessa formação? Não.

Se a instituição em que trabalho ganhou com isso? Sim. Não tenho dúvidas disso. Ganham cada vez que um profissional investe em si. Ganham novas ideias e uma profissional com um olhar mais abrangente e especializado, mais competente para dar resposta aos desafios do cuidar diários.

Se valeu a pena? Sim. Espantem-se. Há malucos para tudo.

O meu único compromisso (e acredito que para a maioria dos colegas) é para com o utente. Para aquele de quem cuido. Sinto o dever de o fazer, o melhor que possa. O melhor que sei. Isso passa por me manter atualizada. Em cima da crista da onda. Baseada na mais atual e credível evidência científica. Desenganem-se os que pensam que basta queimarmos as pestanas 4 anos e está feito. É para a vida. Mal seria se assim não fosse.

Não há dinheiro no mundo que nos pague os aniversários que não festejamos, as prendas que não vimos abrir, os primeiros passos que não acompanhamos, as primeiras palavras que foram ditas e que nós não ouvimos. Não há dinheiro no mundo que nos compense por este sentimento de não estarmos bem em lado nenhum. Se estás em casa, tens a cabeça no hospital, se estás no hospital tens o coração em casa. Nenhum. Não há ninguém que nos diga como explicar a um filho doente que a mãe ou o pai tem de os deixar para ir cuidar de outros. Ninguém. Conseguem sentir a ironia disto? Não há ninguém que nos prepare para termos de recusar o abraço de um filho. O toque. Nada. Nada nem ninguém que nos prepare para termos que nos afastar dos nossos para os proteger. Conseguem sentir a grandiosidade do que nos é pedido?

Aposto que haverá alguém desse lado a pensar qualquer coisa como “ mas foram vocês que escolheram essa vida!”. Certo. Não podia estar mais de acordo. Mas ninguém nos prepara para isto. Ninguém. E ainda bem para ti. Sorte a tua.

Ser enfermeiro é ouvir muitas vezes “sou eu que te pago o ordenado” ou “não querem é fazer nada”. É ser o parente pobre da saúde. O elo mais fraco. O que está no fim da linha. A ovelha ranhosa. Aqueles que queriam ser médicos mas que não conseguiram.

Para ver se nos entendemos. Ninguém está acima de ninguém. Todos somos necessários e úteis. Cada um com a sua missão. Imprescindíveis no desempenho do seu papel. Uma verdadeira linha de montagem, articulada e continua, em que cada passo é fundamental para o sucesso final. Cada um acrescenta. Parece-me simples. Entenda-se sucesso, como o bem-estar do outro, a qualidade de vida, a dignidade, quiçá a cura. Mas apenas esta última torna-se redutor face à imensidão de coisas que há a fazer até atingir esse patamar.

Aqui há dias falava com o meu marido. Ele, incrédulo com a resposta que uma colega lhe tinha dado. Dizia-me, surpreso, que se tinha dirigido a uma enfermeira para obter uma informação e que ela lhe tinha respondido “eu sou só enfermeira”. Ora, lá está, é nisto que temos que mudar. Ele, respondeu-lhe, é enfermeira, pode tirar o “só”. Ela sorriu-lhe e concordou. Nem para nós somos bons. Menosprezamos o nosso papel. O nosso esforço. Desvalorizamos. Temos esta merda de complexo de inferioridade, que não nos faz evoluir mais enquanto profissão. Tem que partir de nós também. Principalmente, diria até.

Essa discussão é só ridícula e confesso que lhe tenho muito pouca tolerância. Acabe-se de uma vez por todos com este maldito complexo de inferioridade da nossa classe. O respeito dos outros parte também de nós.

Somos nós que estamos lá quando descobres que estás grávida. Quando o teu filho nasce. Quando nasce uma família. Quando estás com medo. Quando tens dor. Quando os teus entram numa urgência. Quando entras para um bloco operatório. Somos nós que estamos lá quando de noite se abate sobre ti um medo inexplicável. Quando te queres mover mas não consegues. Quando um dos teus morre. Quando não conseguiste perceber o que te foi dito. Quando não sabes como tomar a tua medicação. Quando precisas de chorar. Somos nós que estamos lá. Talvez esteja na altura de estares agora aqui por nós também. Como? Respeita-nos. Só. E basta. Parece-me uma troca justa e mais que tudo: merecida.

Os enfermeiros representam para o SNS ganhos em saúde. Trocado por miúdos é o mesmo que dizer que diminuem a recorrência aos serviços de saúde e as complicações e co-morbilidades nos doentes, com inevitáveis ganhos na sua qualidade de vida. E inevitáveis ganhos económicos. 

Aqueles que não vão votar. Que trocam o exercício do ser DEVER cívico, por uns copos numa esplanada, por um mergulho na praia, que utilizam a velha e triste desculpa de que “eles (os políticos, esclareça-se) são todos iguais”. Só vos tenho a dizer uma coisa. Cada país tem a governação que merece. Que os representa. Que é o espelho das suas almas e das suas vontades. Quando não tomas uma posição, esse ato em si, já é uma tomada de posição. Pensa nisso.

Não nos batam palmas. Troquem-nas por respeito quando nos dirigem palavras. Quando nos fazem pedidos ou questionam. Troquem-nos por votos esclarecidos e em consciência naqueles que apoiam o SNS e que lutam por melhores condições de trabalho. Troquem-nas por aceitação e compreensão quando lutamos pelos nossos direitos. E mais ainda, pelos vossos.

Se há maus profissionais? Não tenho dúvidas disso. Conheço alguns. Se dignificam a nossa classe e nos representam? De forma alguma. Há de tudo. Imagino que na tua profissão também. Somos pessoas, malta, com todas as virtudes e defeitos que isso implica. Pessoas que cuidam de pessoas. Somos falíveis.

Oiço pelas mesmas vozes daqueles que há meia dúzia de meses, nos apelidaram de criminosos e selvagens, nos apelidarem agora de essenciais e fundamentais. Os mesmos que enchiam a boca para demonstrar a incompreensão por nos queremos equiparar a uma profissão de risco. Está bom agora? Já caiu a ficha?

Somos reconhecidos, por várias entidades, como dos melhores enfermeiros do mundo. Os outros países da Europa acolhem-nos e agradecem a nossa chegada. Aplaudem. Por cá, aquele denominador comum, a várias áreas profissionais, só és bom quando vens de fora.

Vejo mensagens e telefonemas de agradecimento a um colega que fez a diferença no cuidar de uma figura política no estrangeiro. Um orgulho para todos. Um colega que não está cá. Que teve que emigrar, como tantos outros, para poder exercer e ter dignidade. Porque para cá não servia. Devemo-nos focar nisso. Principalmente nisso. Aposto que ele trocaria de bom grado o agradecimento por uma oportunidade digna de trabalho no seu país, junto dos seus. País esse que o empurrou para fora.

A jóia da coroa do SNS, dizem. Oiço-os a reconhecerem-nos mérito e encherem a boca para dizerem com orgulho que somos os heróis que estão na linha da frente. Isso dá-me náuseas acreditem. Muitas. Sabem porquê? Porque me soa a desespero e a preocupação. Não é genuíno. Gostava de encontrar no meu vocabulário um adjectivo verdadeiramente esclarecedor que os classificasse, mas faltam-me as palavras. Ou talvez até as encontre mas não era bonito. E não merece a pena.

Que fique claro. Nós não somos heróis. Nem queremos ser. Somos profissionais. Competentes. E temos direito a dignidade no desempenho das nossas funções.

Os enfermeiros são importantes. Parece-me evidente. E não só quando a vossa vida e integridade física estiver em risco. Ou a dos vossos. Porque aí, meus amigos, permitam-me, não se trata de reconhecimento mas de medo na sua mais pura e primitiva essência.

Se vos vou virar as costas quando precisarem de cuidados de saúde? Nunca. Faço-o pelo compromisso que assumi. Mas por mim. Principalmente por mim. Para me manter fiel aos meus valores. Aos meus princípios. Para que nada me tire o sono. Para que a culpa não me acompanhe na almofada. Se vos devo cuidar com um sorriso no rosto? Sim. Porque vocês estão vulneráveis e a precisar de cuidados de saúde. Não seria justo, muito menos ético. Se sinto que alguns não merecem? Indiscutivelmente.

Se este texto vai mudar alguma coisa? Absolutamente nada. A ponta de um chavo. Zerinho. Mas enquanto faço esta catarse através deste impulso incontrolável de palavras para o teclado, a minha alma fica mais leve e o coração mais tranquilo. E se da próxima vez que te cruzares com um de nós, alguma destas palavras te venham à memória, ou melhor ainda ao coração, já terá valido a pena. Não terá sido em vão.

Não tenham a memória curta. Porque isto vai passar. Mas nós continuamos por cá. Noutras lutas diárias. Algumas bem antigas.

Não queria terminar sem agradecer a todos os outros profissionais com quem trabalho diariamente e que fazem de mim melhor enfermeira. Somos todos importantes, malta. Todos sem excepção.

Para terminar e porque isto já vai longo, ser enfermeiro em Portugal é uma merda. Mas é a melhor profissão do mundo.

Cuidem-se e vemo-nos por aí.

Um abraço sentido a todos os enfermeiros. Vamos à luta colegas!

Irina

 

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13 comentários em “Ser enfermeiro em Portugal

  1. Grande Irina.
    Tenho grande orgulho de ser tua colega e trabalhar contigo.
    Muitos turnos passamos juntos eu a fazer o parto e tu a cuidares dos bebés
    Grande verdade essas tuas palavras.
    És única e com uma força invejável.

  2. Parabéns a todos os Enfermeiros (as)!!!!
    Só posso dizer que reconheço o vosso trabalho árduo e que não há dinheiro que pague… Infelizmente na minha débil saúde, privo frequentemente com o vosso digno serviço.
    Nem sempre reconhecido por todos os doentes e muito menos pelos sucessivos Governos. Pessoalmente estou grata a Deus por ter colocado nos meus momentos mais difíceis verdadeiros Anjos chamados Enfermeiros do SNS.

  3. Irina muito Obrigada pela catarse e Parabéns pela mesma.
    Conseguiu refletir o sentimento da esmagadora maioria.
    Beijo grande e um bem haja.

  4. E é isto….obrigada Irina
    Também o meu coração ficou mais calmo ao ler estas palavras
    Enfermagem é mesmo a melhor profissão do mundo….

  5. Um bj.grande e coragem . Tenho uma filha enfermeira reveijo neste texto a vida dela. Hoje foi fazer o turno da tarde e mais a noite porque há falta de pessoal e o bloco de partos onde exerce não pára. Com isto do covid hoje só me apeteceu dizer não vás fica com as tuas filhas e marido. Trabalha há 22 anos sem carreira. Obrigada por estas palavras.Bjs.

  6. Mais uma oportuna e excelente chamada de atenção, mais uma justa reivindicação, catarse ou grito de revolta que com tanta subtileza quiseste partilhar. Que “Deus” te oiça e os “Homens” também. Parabéns querida Irina. Orgulho-me muito de ti pela pessoa e profissional que és.

  7. Obrigada Irina pela sua descrição, não podia ser mais verdadeira. Bem haja e continue a dar o seu/nosso melhor.

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