Sempre fugi de bolos de aniversário

Sempre fugi de bolos e velas de aniversário

Quase sempre fugi deles.

De longe sorri e guardei expressões de soprares de velas de aniversário.

O brilho de olhares em dias que amigos ou familiares juntam à sua volta cantares seculares.

Fiz um esforço para abrir gavetas perras de dias alegres

Não consegui recuperar o meu último,

Mas quero acreditar que existiram.

Algures na ingenuidade da infância.

Falhei demasiados dias de aniversário.

Olhos azuis aprenderam a andar, a cair e levantar

Falhei demasiados dias.

Não saboreei fatias de bolos meticulosamente apresentados pela minha irmã.

A minha irmã e mãe fazem os melhores.

Talvez porque os recheiam e cobrem com genuíno amor.

Ainda tropeçava nos meus pés

Quando percebi que tinha um amor-ódio ao meu suposto dia.

Já sabia ler, escrever e cumprir o exigido em exames de faculdade

E mantinha o vazio desses dias.

Abandonava bibliotecas para ouvir a declaração de amor dos pais

A tristeza da distância e da minha ausência percorria redes invisíveis

Sentia em cada terminação nervosa o vacilar da voz da minha mãe.

Fingia estar bem.

Sei bem fingir para não preocupar.

A chamada termina, o vazio impera e restava-me chorar.

Sei regressar a cada passeio em que sentada molhei cimento ou calçada portuguesa.

O vazio da distância.

Jantares atrapalhados.

Fazia anos que decidi meter a cabeça de fora e aprender a respirar fora do mar.

Nunca perguntei à minha mãe se chorou

Seria eu cor de rosa e de cabelos escuros penteados?

Não.

Enrugada e suja de sangue

Mãe, mesmo assim achaste-me bonita?

Sei que sim.

Sempre fugi do meu bolo de aniversário

Redondo ou quadrado, de autor ou de ovos de casa

Sempre condicionava um jogo difícil de jogar.

Consciente ou inconscientemente afinal tratava-se de rejeição

Cobardemente desenhei este quadro de simples leitura

A rejeição clara de memórias a ele associadas.

Deixei cair e escondi sozinha, demasiadas vezes,

Cabeça e coração

Em almofadas cor de rosa que me ofereceste.

Sempre preferi o bege ou branco

Mãe,

Mas sei de olhos fechados onde guardas

Desde os tempos que eu tinha cabelo curto, farto e preto

A capa de edredão com um cavalo castanho estampado.

Nunca conseguiste desfazer-te dela

Sobressai entre panos caros de croché na segunda gaveta do armário do quarto das visitas

Eu nunca a dobrei e encaixei na mala de fim de semana

É mais tua que minha, hoje entendo isso.

Afinal de contas sou eu ou tu que amas as crinas esvoaçantes?

Quando sinto nas maçãs do rosto coradas o vento do galope

À distância, és tu que cerras os olhos e desejas saborear o gozo da liberdade.

Demasiados anos depois,

No meu aniversário,

A minha irmã com timbre de voz de amor

A ausência da mínima oscilação de mágoa

A revelação.

Guarda as tardes de fim de semana

Em que chorei, ao lado dela, no banco de trás do carro

Uma queda aparatosa do cavalo e não terminei a prova

Não era o sangue da palma da minha mão que ela acarinhava,

Sabia o esforço que faziam para me comprar as senhas de equitação.

Os olhos azuis meigos de impressões genéticas partilhadas comigo tinham um sonho simples,

Queria, na força que me reconhecia, que a tivesse levantado em braços.

Em braços para o lugar admirado, a garupa imponente do cavalo.

Mas eu era a mais velha, só a mim me foi dada a oportunidade.

Sempre fugi do calor das minhas velas de aniversário.

Até hoje.

Despir o sobretudo que me forra a carapaça,

Arriscar o confronto com a tristeza de mais uma partida,

Abrir as janelas e voltar a sentir o cheiro do verde da proximidade de casa.

Cheguei.

Demasiado tempo a evitar soprar medos e fantasmas das velas de aniversário.

Mãe, na luz ténue que emitem olhei por cima do ombro

Vi-te chorar.

Já não tenho as rugas do refúgio do teu mar,

Já não tenho na pele o vermelho da tua coragem.

O tempo ferrou-me com outras marcas

Mas vi as mesmas lágrimas da nossa primeira troca de olhares.

Têm o calor do primeiro colo.

A cada despedida

Abro a janela do carro

Vejo-te acenar.

Há anos que sei qual é a curva da estrada em que já posso ceder à eminência da saudade.

Amor.

Amor maior.

Amor incomparável.

Sigo o meu caminho

Desta vez escolhi reunir carinho e gostares

Ias ficar orgulhosa de ver os corpos desenhados por valores raros que me rodeavam.

Vais acreditar se disser que sorri ao cantar os parabéns?

Nota sobre a autora:

Clara Sampaio.

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