Recompor-se

Olhava o reflexo no espelho, sabia-se viva, tudo o resto lhe era indiferente.

Ecoavam-lhe na memória a celebre frase de recuperar o tempo perdido. Palavras ditas com tom condescendente e com o ruído de fundo das chávenas de café. Estas palavras insensatas, entre todas as outras que o foram. No fundo um chavão, uma expressão absurda com a qual supomos enganar a dura realidade de que nenhum tempo perdido é recuperável. Podemos mesmo dizer que a vida é assim cheia de palavras que não valem a pena, ou que até já valeram, porém depois perdem a sua validade e esfumam-se como o tempo a que pertenceram.

No reflexo do espelho sentiu-se uma naufraga que quer remar em direção à ilha. A ilha que todos almejam, mas nem sabem se é real, se apenas fruto da imaginação, da nostalgia ou do passado. Vivemos a remar para que cada metro percorrido faça sentido, para que cada avanço nos encaminhe para a salvação.

As lágrimas rolaram. E ela que estava numa casa de banho onde qualquer um podia entrar, sentiu o sangue a subir à cara e nada podia fazer para o obrigar a regressar à espessura das artérias, lá onde a vergonha se disfarça com naturalidade e ligeireza.

Olhou em volta e sentiu-se espiada. Alguém olhava com a curiosidade de ver o sofrimento do outro. Ver o rosto de um sentimento tantas vezes recalcado, tantas vezes censurado. Só assumimos as dores do corpo. As da alma, parecem de importância menor. Voltou-se para o seu reflexo e aclarou a voz e repetiu baixinho “calma, calma.” O mantra não fez qualquer efeito. Tentou a respiração. Aquela que todos sabemos de cor. Inspira, expira… Nada. Voltou a mergulhar as mãos na água gelada e atirou-a para a cara, salpicando tudo ao seu redor. Com voz de mandona e com ar de quem ralha com uma criança disse em voz de comando – Ora até os ânimos mais fortes têm momento de irresistível fraqueza!

Todos nós conhecemos esses momentos, basicamente é quando o corpo não se consegue comportar com a reserva e a descrição que o espírito levou anos a ensinar-lhe.

Pensou para ela, que se FODA a reserva. Voltou a olhar o espelho e com a distância necessária resolveu assinar um pacto com o mesmo. Aquela seria a sua imagem do tempo perdido. Agora sairia dali à procura da imagem do tempo ainda por encontrar. Só voltaria ali quando houvesse mais tempo perdido.

Recompôs a maquilhagem dos olhos, ajeitou as roupas. Abriu a porta e sentiu o barulho de fundo das chávenas. Nem pestanejou e saiu para a rua. Voltaria a pegar nos remos para remar em direção à ilha.

 

Nota sobre a autora

O meu nome é Inês Pina.

Sou uma marrona que não gosta de estudar, uma preguiçosa trabalhadora e uma fala-barato solitária.

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