Porque é que não consigo parar: Parte III

Estes pauzinhos representam a quantidade de gelados que comi durante o mês de julho (para além de outras formas de chocolate e açúcar). As fotografias destes artigos foram feitas com os pauzinhos, que guardei como memória de uma fase negra de descontrolo na minha vida.

Porque é que não consigo parar?

Porque tenho uma compulsão alimentar muito forte. Noutras palavras, uma adição. Sou uma viciada, penso como uma viciada, comporto-me como uma viciada. Em tudo, sou igual a quem esteja viciado em heroína ou no jogo. Quando perco o controlo da compulsão, só consigo pensar em chocolate. Mesmo quando fico enjoada, mesmo sabendo que estou doente e que posso morrer. Acordo a pensar em ingerir chocolate, ignoro amigos e família, e só estou bem no meu quarto, sozinha com o meu vício, no meu lugar de paz e conforto. Ao longo da minha vida tive todos os comportamentos de uma viciada: furtava nos supermercados quando era criança; comia às escondidas, quando era preciso, e cheguei a entrar num contentor do lixo para recuperar um gigante frasco de Nutella (que me tinha sido retirado para controlo do vício). Se o chocolate fosse caro, ia à falência, provavelmente.

Quando digo às pessoas que sou toxicodependente ou que tenho uma adição, e quando sabem que é com chocolate, riem-se. Porque o chocolate não é proibido. É inócuo, aliás, para a maioria das pessoas. Mas não é assim com todas as drogas, com todos os vícios? Até variantes da heroína, em doses controladas, medicamente administradas, não deixam a esmagadora maioria dos pacientes viciados. Tantas pessoas que já experimentaram um cigarro e nunca fumaram (e não fumam) diariamente.  Bebo vinho de vez em quando e não sou alcoólica.

Uma adição é sempre um problema sério, qualquer que seja o objeto da adição.

A adição é muitas vezes um sintoma de um problema mais profundo. Na maioria das vezes, o problema da adição não está no objeto da adição (heroína, chocolate, tabaco), mas nos fatores que motivaram o aparecimento da adição. Como chocolate porque é a única substância que tem um efeito imediato que desesperadamente preciso (e que nenhuma medicação consegue igualar): elimina-me a ansiedade (previne-me ataques de pânico e ainda me diminui a perceção da dor). Como a maioria das pessoas com adições, quando perco o controlo da compulsão alimentar estou, essencialmente, a automedicar-me.

A minha obesidade vai estar sempre presente, mesmo que perca este peso. Porque vou ter sempre um vazio emocional que não consigo localizar, vou continuar a sofrer de PTSD, e continuo a ter, sempre, uma compulsão alimentar.

Já estava obesa em outubro de 2019, quando perdi o controlo da compulsão alimentar. Mas tinha apenas 60 quilos. Se tivesse tido consciência, nesse momento, de que já era obesa, talvez não tivesse chegado aos 83 quilos. Talvez seja possível melhorar (evitar) as taxas de obesidade se os médicos perceberem que ela começa muito antes dos elevados níveis de aumento de peso. Pode resultar de uma automedicação, desequilíbrio hormonal, compulsão alimentar ou resistência à insulina. Que já está presente. Para estarem mais atentos a possíveis sinais destes fatores, a terem uma visão mais global e completa dos pacientes.

A obesidade é o resultado de uma combinação de muitos fatores: hormonais, genéticos, químicos, emocionais e educacionais. E não só de aspetos culturais ou de uma “má alimentação”.  Tem algo imutável: é uma doença, uma condição médica. Não é uma opção do paciente, não é uma escolha de vida. Pode ser até um sintoma de um desesperado pedido de ajuda.

A obesidade tem muitas caras, muitos fatores, muitos cenários. E, ainda assim, quando olhamos para uma pessoa obesa, apenas vemos a obesidade. E assumimos imediatamente que é preguiçosa, e que adora comer. Mas fui magra a maior parte da minha vida. Faço exercício regularmente desde 2007 (cheguei a ir ao ginásio 5 dias por semana ou a estar em três escolas de dança ao mesmo tempo). Não sou preguiçosa (escrevi uma tese de doutoramento de 1500 páginas). Não adoro comer (é uma obrigação). Não escolhi nascer com uma rejeição inexplicável á comida. Não escolhi passar pelos eventos traumáticos da minha infância.

Num mundo de dietas fáceis sobrecarregados com ofertas milagrosas de perda de peso, quem acha que está em descontrolo deve ser informado/a: é uma condição médica. É para ir ao médico, logo que aparecem os primeiros sinais. Existem soluções médicas para prevenir a obesidade, e respostas médicas combinadas para os vários fatores que a podem estar a determinar. O dinheiro que gastam em produtos dietéticos deve ser investido em cuidados médicos de qualidade e acompanhamento regular.

Se eu não tivesse a cabeça cheia de estereótipos sobre a obesidade, apesar de toda a minha experiência pessoal passada, talvez tivesse pedido ajuda logo em janeiro de 2020, quando ainda só tinha 65 quilos.

Agora, com mais de 80 quilos, tenho um longo e incerto caminho de recuperação para fazer. Nesta altura, estou há 10 dias sem comer chocolate. Continuo com esperança de encontrar uma forma sustentável de me relacionar (bem) com a comida. Continuo com esperança de poder voltar a dançar. Sei que vou ter muitos dias de falhanço pessoal. Dias em que não consigo sair da cama. Dias em que vou ceder à tentação e vou comer chocolate.

Algures no meio da confusão que foi o meu primeiro semestre de 2020, lembrei-me das lições de Newton e Einstein. Lembrei-me que todos os dias, quando acordamos e nos levantamos da cama, já estamos a lutar contra qualquer coisa, já ganhámos um bocadinho numa luta constante: a luta contra a gravidade. Não nos esqueçamos de que há uma força gravitacional que nos puxa para o chão, para o centro da terra, constantemente a fazer pressão. Por isso, para os dias em que a única vitória que tenho é conseguir levantar-me da cama, relembro-me deste reconforto: hoje ganhei, outra vez, a luta contra a gravidade.

E afinal, não estamos todos a lutar contra a gravidade?

Nota sobre a autora:

Inês Ferreira Leite, Professora Auxiliar da Faculdade de Direito de Lisboa.

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