Porque é que não consigo parar: Parte II

Nasci sem vontade de comer.

Nasci sem vontade de comer e sou obesa.

Fui magra a maior parte da minha vida e sou obesa.

Porque a obesidade é uma doença que começa muito antes do paciente engordar.

Graças à dança mantive-me saudável e feliz, com o peso e a compulsão alimentar controlados. Porém, no final de 2014 comecei a sentir dores na anca esquerda enquanto dançava salsa. Em 2015 veio o diagnóstico: conflito femoroacetabular. Não tem solução, teria de optar: deixar de dançar e, mesmo assim, viver com a dor, ou fazer cirurgia para eliminar a dor, e deixar de dançar. O meu médico – da maior excelência técnica – não se igualava em competências sociais e humanas e não hesitou em dizer-me: nunca mais poderá dançar. As lágrimas começaram-me a cair nesse momento e, durante dois anos, regressavam sempre que falava do assunto. Fui operada e fiz a discussão de doutoramento em 2015. Em modo sobrevivência, troquei a dança pela fisioterapia. No final de 2016, ainda em recuperação da cirurgia (e ainda em fisioterapia), às dores na anca esquerda (que nunca passaram) juntou-se uma dor na lombar, que foi progressivamente ficando pior. Tendo perdido a capacidade de controlar o peso ou a compulsão alimentar (mas nunca a esperança de voltar a dançar), fui-me habituando a viver com a dor e regressando ao exercício físico possível.

Em 2017, sempre com dor e sem respostas médicas, tomei uma decisão: preferia viver com (mais) dor e com a dança do que (com dor e) sem a dança. Foi com dor que me mantive a dançar até janeiro de 2020 (data em que fiz o último sarau com a minha escola de dança, quase sem conseguir ensaiar, com relaxantes musculares e analgésicos). Através da dança fui tentando ignorar a dor (que aos poucos se ia instalando no corpo todo) e mantendo a compulsão alimentar controlada, pelo que consegui não ir além dos 65 quilos. Tive de trocar as aulas de “cardio” que fazia no ginásio pelo pilates e passei a treinar com um PT para fazer uma reaprendizagem muscular e apaziguar as dores. Passei a incluir na minha rotina semanal as massagens, a fisioterapia, os cremes analgésicos, os alongamentos.

No início de 2019 comecei a rejeitar a comida de novo. Fiz uma mudança de regime alimentar e perdi quase 8 quilos. Mas a dor não diminuiu com a perda de peso. Comecei a odiar a comida e não me apercebi. Não me apercebi, a tempo, que estava a centralizar na comida (e na minha relação com a comida) todo um conjunto de problemas, tensões, frustrações, dores, com as quais não estava a lidar diretamente.

Odeio a comida, mas sou obesa. É possível.

Em setembro de 2019, regressei às aulas de dança com um peso perto do ideal (tinha 60 quilos) e cheia de esperança de que a combinação de massagens, fisioterapia, treino e alimentação me ajudassem a reivindicar um corpo sem dor. Em outubro as dores agravam-se para lá do suportável e começo a perder o controlo de mim própria.  As aulas de dança, que eram sempre um prazer, tornam-se pesadas e tive de diminuir a carga semanal e desistir de algumas. Deixei de conseguir ensaiar em casa e fazia o possível para ir seguindo o possível durante as aulas. Mas no final de outubro já estou a comer chocolate sem grande controlo. Comprometi-me a fazer o sarau de Natal (que foi a 19 de janeiro), e fiz. Mas com uma ida às urgências e relaxante muscular. O final de ano passei-o em casa, com metade do corpo imobilizado de dores.

Estava a lidar com um cenário de dor crónica generalizada e não sabia. Para que me compreendam, vou tentar ilustrar em qualidade a quantidade da dor com que vivia, quase diariamente. Comparo estas dores às que senti sempre que, após uma cirurgia séria, fui obrigada a andar. Quem já fez alguma cirurgia gastro minimamente relevante – daquelas que implica “abrir a barriga” (apendicite, cesariana, por exemplo, que são duas das que fiz) – sabe que, no dia seguinte, somos obrigadas a levantarmo-nos. Por mais que nos doa o corpo todo e que nos seja impensável sair da cama, tem mesmo de ser, nem que seja para voltar à cama 1 minuto depois. É este o nível do esforço que, na altura, me era exigido para me levantar da cama de manhã. Ou mesmo após tanto pouco tempo como 1 hora sentada a trabalhar ou no sofá. Mesmo em descanso, não tinha posição confortável. Mesmo com mudança de colchão, almofadas especiais e todas as técnicas imagináveis, não conseguia dormir pacificamente e sem dor.

Logo a seguir ao sarau perco a última réstia de controlo e regresso a uma dieta rígida de chocolate em regime de total descontrolo da compulsão alimentar. Mal dei pelo Covid, para ser sincera. Sabia que estava deprimida, cheia de dores e tentar superar máximos históricos de ingestão de chocolate por dia (cheguei a comer mais de 1 quilo numa tarde). Em abril decido mudar de médico e recebo um diagnóstico de possível fibromialgia (a outra palavra que eu temia, talvez mais do que a obesidade). A medicação ajuda. As dores diminuem em cerca de 50%, mas a medicação deixa-me tão sonolenta que mal consigo funcionar. Em junho desisto de resistir e passo a fazer medicação também para a depressão (o que, inicialmente, me deixa ainda mais sonolenta). Ainda assim, continuo a comer entre 300 a 900 gramas de chocolate por dia. Certos dias, não faço mais nada para além de comer chocolate. Deixei de me pesar. Em meados de agosto, dão-me finalmente a medicação que me ajuda a regressar à realidade. Estava com 83 quilos. Ganhei 23 quilos entre setembro/19 e agosto/20.

 A obesidade é uma doença que começa muito antes do paciente engordar.

Era obesa aos 6 anos, quando vivia para o dia em que me deixavam comer chocolate. Era obesa aos 12 anos, quando comia 8 gelados num dia. Era obesa aos 16 anos, quando comia 2 quilos de chocolate no natal. Era obesa em setembro/19, quando estava com 60 quilos. Só não estava era gorda.

Vou ser obesa para sempre. Porque a minha obesidade é doença e sintoma. É doença, tecnicamente. É também uma consequência de um conjunto de múltiplos fatores: compulsão alimentar, trauma emocional (PTSD), dor crónica, tendência para resistir à insulina. E, nesta medida, é um sintoma de um plano global disfuncional mais profundo. Mas é uma doença que mata, e que me pode vir a matar.

As quantidades de chocolate que como são perigosas: estragam-me os dentes, provocam-me anemia, dão-me cabo do fígado. Isto quando me mantenho magra. Quando engordo, podem vir trazer-me diabetes e uma morte precoce.

Porque é que não consigo parar?

Nota sobre a autora:

Inês Ferreira Leite, Professora Auxiliar da Faculdade de Direito de Lisboa.

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2 comentários em “Porque é que não consigo parar: Parte II

  1. Porque mais grave que eu Chocolate e tratar o que b
    Nos leva desistir a comer sem nos darmos conta do que comemos ….a origem é lixada de tratar.
    Digo eu que tambem sempre serei obesa já fui magra hoje nao sou..
    E luto para que a minha filha nao.siga o meu exemplo quando penso nisso doi doi muito….

  2. Aqui está a segunda parte e aqui vai tb o meu segundo comentário.
    Também nao consigo parar. Antes da pandemia até estava a melhorar, ía ao ginásio, seguia mais ou menos a dieta. Depois veio a maldita e como sou professora, vim para casa em regime de teletrabalho. Foi o descalabro… Exercício fazia pouco cá em casa, entrei na onda de experimentar receitas novas, ansiedade e compulsão a aumentar, às tantas já sentia dores no coração e em todo o corpo, tensões a aumentar (isto tudo provocado pela ansiedade, pk ía fazer exames médicos e dava que estava tudo bem). Vieram as férias de verão (não são compatíveis com dieta), ora toca a engordar mais um bocadinho… afinal férias são férias!!! Não sou normal! Só pode. Pareço uma velhinha, que me custa a subir escadas, preciso de um guindaste para me levantar, ando sempre com os calores (até parece que ando com a menopausa). As pessoas qie me rodeiam bem me tentam ajudar e já estou a ser seguida por médicos, mas parece que eu não me quero ajudar e ando a tapar os meus próprios olhos com areia……

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