Porque é que eu não consigo parar: Parte I

Nasci sem vontade de comer. Diz quem me conheceu na altura que logo à nascença fiz das refeições um tormento. Porquê, não sei. Sei que o confirmam as minhas primeiras memórias da hora da refeição. Contam-me que o pediatra terá aconselhado: “não a forcem, ela irá ter fome, mais tarde ou mais cedo!”. Foi mais tarde, de certeza, porque desde que me lembro de mim, lembro-me também do calvário da refeição. Nem com histórias, nem com aviões, nem com ameaças. Não gostava de nada, era a criança mais esquisita para comer de qualquer grupo, fazia bolas no canto da boca, escondia comida nos guardanapos (ou onde fosse possível), e fazia inveja à “princesa da ervilha” quando retirava todos os pedacinhos de cebola do arroz antes de poder enfiar uma garfada na boca. Havia apenas 3 coisas de que gostava de comer: croquetes, pão e chocolate. Com cerca de dois anos passei por um conjunto de eventos traumáticos que me deixaram duas heranças: o ódio à comida e uma forte dependência química de chocolate.

Em suma: sofro de um sério distúrbio alimentar (o qual, em parte, nasceu comigo e, em parte, foi agravado pelas circunstâncias da minha infância).

A “hora da refeição” foi o meu calvário mais evidente até à puberdade. E raramente se ficava por uma hora. No colégio que frequentei até aos 10 anos, passei religiosamente as duas horas de almoço no refeitório. Os colegas de turma iam esvaziando os seus pratos e saindo e lá ficava eu, sozinha, com as monitoras e as freiras (cujas preces sobre mim ficaram certamente sem resposta), a lutar contra o prato de comida. Lembro-me da festa que o staff do refeitório fez no único dia em que consegui terminar a minha comida a tempo de ter tempo de brincar no recreio… Mudei de colégio e, como estava no 5.º ano, já ninguém me controlava a comida. Respeitava os rituais e lá ia com os colegas para o refeitório, mas normalmente só comia a sobremesa (se fosse gelatina ou gelado de chocolate). Passei a ter dinheiro de bolso para o lanche e gastava-o todo em gelados e chocolates, que comprava no bar da escola. Gastava o dinheiro do lanche, das prendas de anos e de natal. As senhoras do bar achavam piada quando ia 5 ou 7 vezes seguidas ao bar comprar um chocolate. Comprava sempre um de cada vez, porque não tinha consciência da força do meu vício. Na altura não havia regras de nutrição nas escolas, por isso, se uma miúda de 13 anos quisesse comer 7 gelados num dia, era só engraçado.

Era também engraçado, na família, contar as quantidades de chocolate que eu conseguia comer de uma só vez. Especialmente no Natal, quando me ofereciam Guylians, o meu chocolate gourmet favorito. Chegava a comer mais de dois quilos em dois ou três dias. Fui sempre uma criança magra, por isso o meu “vício” era visto como mera excentricidade. No liceu, já na escola pública, passei a almoçar, quando tinha companhia, mas a minha melhor amiga gostava tanto de chocolate como eu. Tínhamos um ritual: íamos comprar packs baratos de 4 ou 6 pastas de chocolate ao supermercado (já na altura passei a privilegiar a quantidade face à qualidade) e ficávamos sentadas, na entrada de um daqueles prédios antigos das Avenidas Novas, a conversar e a comer, duas ou três horas. Continuava magra, por isso não gerei sinais de alarme.

Aos 18 anos adquiri a liberdade que mais antecipava: já ninguém me podia obrigar a comer! Passei a comer só e tudo o que queria (e foi um desastre). Na Faculdade, quando tinha de estudar vários dias seguidos, era possível passar mais de 5 dias a Ice Tea de limão e batatas fritas de pacote. Ou o que me apetecesse – quase sempre com chocolate e nunca saudável – pois finalmente não tinha a quem dar satisfações. Comecei a engordar quando substitui a calçada pelo carro, mas ainda assim terminei a faculdade com um peso adequado e sem sinais de alarme. Os primeiros anos de trabalho foram um inferno, raramente estava em casa, e quando chegava a casa, com o meu namorado, com quem vivia, comíamos refeições congeladas de supermercado, que aquecíamos no micro-ondas. O peso ia aumentando aos poucos, mas, entretanto, engravidei, quando tinha 24 anos, e os 81 quilos do final da gravidez eram fofinhos. Perdi-os todos cerca de 1 ano após o parto, com alguma disciplina e algum exercício, mas sem sacrifícios, e estava com 60 quilos quando comecei a escrever a tese de mestrado. Em pouco mais de 6 meses, numa dieta rígida de chocolate, ganhei para lá de 15 quilos e cheguei a rondar a palavra que mais temia: “obesidade”.

Sim, nasci sem vontade de comer e sou obesa.

Ao fim de dois anos com mais de 75 quilos, em 2005, as dores nos joelhos levaram-me ao médico, que me receitou exercício físico e dieta. Quando me vi no espelho dos olhos de quem, em mim, apenas via uma mulher obesa (que ainda não era, tecnicamente, em termos de massa corporal), decidi perder peso. E perdi. Fiz a dieta Lev@ e livrei-me os 15 quilos que tinha a mais em seis meses. Continuei a perder apesar de regressar a uma alimentação normal (mas saudável e regrada). Em 2008, quando me casei com o namorado de sempre, tinha 57 quilos e o vestido de noiva dos meus sonhos. Dieta, disciplina e exercício mantiveram-me o peso controlado quando mergulhei num novo desafio: fazer o doutoramento. Fui-me mantendo, com o peso sempre a variar, mas sem chegar aos 65 quilos, que via como limite simbólico do razoável. Em 2012 fiz uma pequena pausa de intensidade no doutoramento e descobri a dança a par. Fiquei tão feliz com a descoberta que fiz uma outra, por arrasto: desde que dançasse, podia comer o quisesse e perdia peso na mesma. Fiquei tão magra que me assustei, quando me vi numa fotografia, em 2013. Entreguei a tese de doutoramento em 2014 sem grandes desastres metabólicos e, tendo finalmente tempo livre, dediquei-me à dança com paixão.

Neste ponto, gostaria tanto de poder escrever “e desde então, posso dançar e comer em liberdade, mantendo o peso e a compulsão alimentar sob controlo!”. Um final do estilo “fui feliz para sempre” e tal. A verdade não me deixa assim dizer, e a vossa paciência impõe-me certamente que termine por aqui. Mas a história continua (Parte II). Por agora, deixo apenas uma das mensagens principais que gostaria de partilhar com esta(s) história(s):

– A obesidade é uma doença que começa muito antes do paciente engordar.

Nota sobre a autora:

 Inês Ferreira Leite, Professora Auxiliar da Faculdade de Direito de Lisboa.

Partilhe nas Redes Sociais
FacebookTwitterPinterest

1 comentário em “Porque é que eu não consigo parar: Parte I

  1. Estou ansiosa pela segunda parte, sempre fui magra 50kg, mas a comer bem. Era daquelas que comi comia e nunca engordava (parecia que tinha a bicha solitária!!) Por problemas de ansiedade e ataques de pânico (doenças graves em casa) comecei a ganhar a compulsao de comer e a engordar. Isto, mais ou menos há 5 anos. Dieta para aqui e acolá, o máximo que atingi foi 65kg. Pois, neste último ano, piorou mt. De tal forma, que me levanto de madrugada para comer, só penso em comer, nunca fico cheia, só paro de comer, porque a minha consciência diz que já está na hora de parar… Durante o dia e metade da semana, até consigo levar a coisa a sério, mas vem a noite e o resto dos dias e estrago tudo. Já ando a tomar medicação para este “vicio”, às vezes parece que faz efeito, outras não… medicamento com efeitos secundários estranhos (nomeadamente a nivel da memória e concentração). E cá estou eu hoje, com 80kg, com vergonha de mim mesma, com vergonha de encontrar pessoas conhecidas… com 39 anos e com imensas saudades do corpo lindo (sem barriga nenhuma e cara linda que tinha). Quanto mais frustrada mais vontade de comer tenho…. ???

Deixe uma resposta

* Campos obrigatórios