Partiste mas continuas cá

Partiste mas continuas cá.

E essa é a dor que mais fere.

Na verdade, considero-me uma sortuda por nunca ter precisado de um velório para me despedir, no entanto sei do que falo quando te vejo partir, mas o teu corpo permanece cá eternamente.

Encontro caras conhecidas na rua. Dois beijinhos e trocamos meia dúzia de palavras.

Perguntam sempre por ti mesmo antes de questionarem como estou eu. É uma dúvida que não se cala nunca.

Será que não sabem que morreste? Porém, continuas cá. Que respondo afinal?

Um sorriso no rosto e “é a vida” resolvem tanta coisa.

À medida que fui crescendo, entendi que as pessoas não questionam sobre assuntos indelicados por se importarem verdadeiramente e, assim, poderem ajudar a superar. As pessoas são curiosas, gostam de mexericos frescos e não tenho mais energia para continuar a calar boatos.

Há mortes que vêm antes daquelas em que o coração deixa de bater.

E essas são as que mais ferem.

Perdi pessoas a vida inteira que julguei serem eternas, perdi pessoas que jamais julguei conseguir viver sem. Contudo, consegui sempre, a verdade é essa.

Chorei mares, lagos e oceanos por quem não merecia a minha secura. As lágrimas ficam sempre bem em velórios, não é verdade?

Afinal, se calhar, não somos assim tão insubstituíveis na vida uns dos outros.

O ser humano tem uma capacidade incrível de sarar feridas sozinho e de colocar cada casinha no seu lugar.

E, por isso, não me arrependo de nada. Sinto que fez tudo parte do mesmo processo de cura.

Partiste mas continuas cá.

E essa é a dor que mais fere porque por mais que dê de caras contigo nas infelicidades da vida, sei que não pertencemos mais à mesma realidade, sei que não és mais a pessoa que eu conhecia.

Partiste mas continuas cá.

Sinto que alguém se apoderou do teu corpo, que reencarnou nele para seguir vivo. Só que não és mais tu.

E não és, de facto.

E essa é a dor que mais fere. 

Nota sobre a autora

Rita Gomes

https://wordslu.blogspot.com/2020/04/quarentena-do-nao-sei.html

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