Para a Margarida!

São 6:30h, tocou o despertador como todos os dias. Os olhos já estão abertos. Quase nunca são fechados com serenidade que o sono profundo exige. Vive em estado de alerta máximo. Foi esse modo definido há muitos anos.

Ficou sem pai cedo. Ficou com a mãe que a educou a ser recatada e disciplinada. Aplicada na escola, certinha nas brincadeiras, responsável com as horas e com as tarefas de casa.

Tudo certinho, nada podia desalinhar.

Fora assim toda a infância e adolescência. Deixou a escola para trabalhar, tinha de ajudar nas contas de casa, não havia condições para a universidade. Nos caminhos para o trabalho cruzou olhares com aquele homem, que mudou para sempre a sua vida.

Trabalhava com afinco e dedicação. Das melhores funcionárias. Chegava antes da hora, só saía quando tudo estivesse limpo e organizado para o dia seguinte.

No caminho do autocarro para o trabalho começou a cruzar-se todos os dias com ele. Quando o papel caiu ao chão, ele ajudou-a a apanhar. Depois disso nunca mais deixou de acompanhar a caminhada dela.

Ela sentiu-se a princesa dos contos de fadas.

A mãe mal soube das caminhadas pediu que se casassem. Não queria falatório na vila. Tinha passado um ano e ela subira ao altar. De véu e grinalda como nas novelas. Feliz que só ela. Ficaram a viver em casa da mãe. O príncipe ainda não conseguia sustentar a casa e a princesa não queria deixar a mãe sozinha.

Nas vésperas de Natal, o primeiro Natal como casados, ela chegou tarde. Muito tarde. O trabalho exigia mais nessas alturas. A mãe tinha ido visitar uma irmã e por isso o príncipe ainda não tinha o jantar feito. Achou um absurdo, aquelas horas e a falta de zelo da sua princesa. Vociferou que estava com fome e que ela se devia dar ao respeito, não andar nas ruas até tão tarde. O prato vazio que ele pegou para mostrar que estava com fome foi partido. Ela chorou! Ele saiu de casa e voltou já alta madrugada. Ela acordada fingiu dormir.

No dia seguinte, foi para o trabalho e pensou naquela cena. Sabia que não era digna de um príncipe. Contudo, achou que também teve culpa. Passou a deixar jantar pronto para os dias em que chegasse mais tarde. Levantava-se mais cedo, também não era assim tão difícil.

Chegou o dia de Natal e o seu príncipe deu-lhe uma prenda linda e fez um pedido fantástico, porque não terem um filho? Ficou enternecida. Fora só uma fase, o seu príncipe estava de volta!

Os tempos foram passando, percebeu que era simples o casamento. Bastava fazer pequenos ajustes. Quando algo não estivesse bem, ela corrigia. Sabia que tinha de ter todas as camisas passadas, a comida confecionada, a casa arrumada.

Sempre que ele se irritava, ela no dia a seguir encontrava uma estratégia de correção e a paz voltava.

Simples. Ela conseguia resolver.

A filha nasceu. Sentiu-se a pessoa mais realizada do mundo. O seu mundo tinha agora uma estrela. Com a bebé gastava horas. Fosse a olhá-la ou a tratá-la. O príncipe, disse-lhe que era só uma bebé. Não era preciso tanta coisa!

Até que uma noite em que estava a dar de mamar, ele se abeirou dela e lhe disse que deixasse a menina e tratasse dele. Ela recusou. Queria terminar a sua tarefa. Enfurecido, depois de uma noite de taberna, tirou-lhe a criança do colo, coloco-a no berço. Depois olho-a e atirou-se para cima dela, gritando que ele também precisava de mamar. Que ela era sua mulher e tinha de o satisfazer.

Ela emudecida só chorava em surdina. Desse dia só se lembra dos berros da menina que não completar a refeição. Assim que ele adormeceu, foi buscar a sua filha e dormiu no sofá, com ela ao colo.

No dia seguinte confrontou-o. Ele pediu desculpa, disse que tinha sido a noite de copos.  A noite de copos foi-se repetindo. Ela passou a sentir a mão pesada na cara, e os puxões de cabelos e a dignidade dilacerada. Achava impossível a mãe não saber, mas nunca abordaram tal assunto. Sentiu-se sozinha e abandonada.

Achou que devia encaixar essa realidade na sua vida. Afinal também havia dias bons. Passou a antecipar-se ao caos.

Ele chegou de madrugada aos encontrões contra os móveis, ela fingiu dormir. Acorda às 6:30h porque tem de deixar o almoço feito e tratar dos miúdos antes de ir para o trabalho. Ele dormirá um sono profundo. A casa está em paz por algumas horas.

Nota sobre a autora

O meu nome é Inês Pina.

Sou uma marrona que não gosta de estudar, uma preguiçosa trabalhadora e uma fala-barato solitária.

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