Ovos, balões e (re)começos

Num piscar de olhos atravessaste o primeiro ano da primária. As letras organizaram-se e formaram palavras, os números deixaram de ser desenhos para serem valorizados. Uma guitarra a sério pôs de lado uma outra de brincar de mão dada com uma pauta que agora lês e transformas em música. Os chutos e pontapés passaram a ser futebol de alto compromisso. A secretária para os tpc ganhou rabiscos que não saem (e ainda bem). E nesta esta travessia veio também reforçada a vivência da amizade. a da tolerância, a da entreajuda. Ontem compartilhaste o que te ia na alma: “mamã, o segundo ano é difícil?” Será mais que o primeiro. “E achas que eu vou conseguir?” Um frio na espinha. Lá vem ela, a genética na sua sublime forma de aparição. A mesma pergunta que fazia à minha mãe antes de começar um novo ano letivo. Sei, portanto, o que devo responder, o que precisas de ouvir, porque é preciso dedicar atenção às sensibilidades, porque não são só as habilidades que contam para a medida do sucesso do crescimento. Sei no que creio, e conto-te.

Claro que vais conseguir, tens um professor espetacular. Tens-me a mim, ao papá, aos avós, todos para te ajudar no que for preciso. Quando achares que não és capaz dizes, está bem? Mas escuta. Vou contar-te um segredo. Sabes o que ajuda? Pensares que vais ser capaz. Lembras-te quando me pediste no outro dia para partires os ovos para o bacalhau à Brás?

-Sim.

-Eu disse-te que não, e respondeste-me que eras capaz. E o que aconteceu?

-Tu deixaste e eu consegui.

-Isso mesmo. E porque conseguiste?

-Porque fiz bem.

-Também, mas também porque tiveste força para acreditar que ias partir bem os ovos.

– Acho que percebi.

Hoje caminhas para o segundo ano. Hoje lá foste. A mochila já não tem bonecos, os cadernos são lisos e já são dois. No estojo habita a novidade de uma esferográfica azul e outra vermelha. Uma régua maior. Etiquetas também clean. Só mesmo a cabeça do Batman sobrevive na lancheira, para que te acompanhe a força do bem.

Não nos dás a mão. Caminhas um pouco à frente, confiante, curioso. Sigo mesmo ao lado, e observo-te pelo canto do olho. Tento estancar a vontade de entrar em modo fotos non-stop. Encontramos a sala que afinal já conhecias. Os amigos vão chegando, abraças o professor. Saudades envergonhadas, que bom. Enquanto me distraio a cumprimentar alguém, já lá estás sentado a rir. Agora a mesa não parece tão alta. Demoro-me a espreitar. “Joana, vais ficar a criar raízes?”, acorda-me um amigo a rir. Faço-te adeus, no caminho um placard cheio de balões, 31. Num deles o teu nome, gostei do simbolismo.

Em silêncio, a oração que nos chegou do Padre Tolentino Mendonça:

“Gosto de pensar, Senhor, que não são apenas
os anos letivos que começam, mas somos
nós. É dentro da nossa vida que conjugamos
começos e recomeços, reencontros e
descobertas… É dentro da nossa vida que
as folhas são mais brancas, essas folhas
onde anualmente escrevemos “lição n.º1”. A
aventura do saber faz sentido se ajuda,
se interroga, se aprofunda a nossa maior aventura
que é aquela do ser.”

É isto tudo, tão isto. E que sejas feliz. Parte os ovos com confiança, solta o balão com uma gargalhada.

Nota sobre a autora

Joana Russinho. Nos quase quarenta, ainda não tirei a carta de mota nem saí na capa da exame como tinha planeado, mas mantenho o sorriso fácil, a gargalhada sonora e a crença na humanidade. 1001 defeitos, mas uma grande qualidade: a capacidade de me rir (muito) de mim própria.

Escrevo desde que me lembro de o conseguir. Porque gosto, muito. aqui sou, serei, eu.

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