O poder de salvar

Há na morte, ainda, um tabu. Temo-la como certa enquanto acontecimento, mas imprevisível na forma, no momento e nas circunstâncias. No entanto, a certeza de que a enfrentaremos – inclusive através das perdas de quem amamos – parece não nos deixar mais preparados ou elucidados acerca de alguns dos seus contornos.

Neste sentido, é importante falar sobre uma questão relevante: a doação de órgãos. Porque na morte, tal como na vida, é importante estarmos informados e sabermos como podemos fazer a diferença, até porque a doação de órgãos é, talvez, um dos gestos de maior altruísmo e generosidade que podemos ter para com outros seres humanos.

 

A IMPORTÂNCIA DA DOAÇÃO

A transplantação de órgãos é, à data atual, uma técnica relativamente frequente de tratamento de algumas patologias orgânicas que, estando em fase terminal e/ou de falência crítica, necessitam desta substituição de órgão para melhorar substancialmente ou mesmo resolver em definitivo.

Regra geral, os órgãos provêm de um dador morto, embora também seja possível fazer transplantes a partir de dador vivo (sendo o exemplo mais conhecido, o do transplante renal), desde que assegurada a viabilidade do processo e a segurança para ambas as partes. Quando falamos em dador morto, referimo-nos a uma pessoa que faleceu numa Unidade de Cuidados Intensivos de um hospital (dada a monitorização mais apertada e meticulosa do estado de saúde e do corpo), mas que manteve viáveis alguns dos seus órgãos que, depois de corretamente avaliados, são “colhidos” em tempo útil para poderem, então, salvar outras vidas.

 

DOAÇÃO PRESUMIDA

Se está a perguntar-se “e o que é que é preciso fazer para poder ser dador(a) de órgãos?”, a resposta é simples: nada! Isso mesmo, não precisa de fazer nada. Isto porque, em Portugal, vigora uma lei que assenta no conceito de doação presumida, ou seja, a partir do momento em que nascemos, todos somos potenciais dadores de órgãos. (Já pensou? Nasceu com um verdadeiro superpoder e, se calhar, nem sabia!)

Caso não queira ser dador, aí sim, terá que preencher um impresso próprio para o efeito, que pode encontrar em qualquer Centro de Saúde, declarando a sua vontade de que não lhe sejam colhidos órgãos após a sua morte. Deve submeter esse impresso ao Registo Nacional de Não Dadores (RENNDA) – registo esse que é, logicamente, consultado antes de qualquer colheita.

 

IMPORTA ESCLARECER

Tal como referi há pouco, a doação de órgãos implica uma certificação minuciosa, de forma a evitar perigos, erros ou constrangimentos, por isso, aquela ideia ainda frequente de que “não quero ser dador porque posso não estar realmente morto/a e ainda me tiram um órgão” não faz, de todo, qualquer sentido!

Para além disso, saiba o seguinte: se se declarar como não dador, pode, a qualquer momento, reverter esta decisão. Para isso, basta remeter ao RENNDA novos impressos, manifestando a sua vontade em anular a informação anterior. Para além disso, a sua objeção à doação pode ser total ou parcial, ou seja, pode definir quais os seus órgãos ou tecidos corporais que não autoriza que sejam utilizados.

 

UM VERDADEIRO SUPERPODER

Acabo este artigo como comecei, reconhecendo que há realmente na morte ainda um tabu. Mas acredito que é papel de todos nós contribuir para a desmistificação de algumas questões, esclarecendo assuntos tão importantes como este.

Passamos a vida a ansiar ser super-heróis, com poderes extraordinários e capacidades sobrenaturais, no entanto – e ironicamente – é no momento da nossa morte que podemos, quem sabe, ter verdadeiramente esse papel e salvar vidas.

Agora que tem conhecimento deste seu superpoder, por favor, não o anule! Viva a sua vida de forma intensa e feliz; quanto ao futuro…logo se vê.

 

Nota sobre o autor

Francisco Santos Coelho, 28 anos de idade. Entusiasta pelo trabalho com e para os outros, sou atualmente Médico a fazer a formação específica em Medicina Geral e Familiar – aquela que, para mim, representa o expoente máximo dessa interação e dedicação.

Considero-me um “médico para lá da bata”, envolvido por vários complementos a esta arte que escolhi para a minha vida e que me enriquecem de forma inquestionável dentro e fora do seu exercício. Acredito verdadeira e entusiasticamente no lema da casa em que me formei e que defende que “um médico que só sabe Medicina nem Medicina sabe” (Letamendi).

Nascido, crescido e pré-graduado na cidade de Penafiel, foi dela que parti depois para todas as outras onde aprendi e vivi muitas experiências que tanto me acrescentaram. Tenho encontrado a certeza de que devemos ser e saber mais para o mundo, mas que só o conseguimos quando somos e sabemos mais sobre nós mesmos. É o maior desafio de todos. É o que procuro.

Ah! Porquê a escrita? Eu explico. Na Medicina, porque é uma forma ainda eficaz de esclarecer dúvidas, desfazer mitos e (in)formar efetivamente em saúde – e falo de saúde como um processo partilhado e participado de ambas as partes. Fora da Medicina, porque escrever é quase-eternizar, é acrescentar som ao silêncio, ainda que o silêncio, sabiamente, não deixe de se fazer ouvir.

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