O mundo novo em que vivemos

Num mundo onde o toque passou a ser quase que proibido, as palavras deixaram de ser suficientes.

Já passou da hora de pensar “isto vai acabar não tarda”.

Já passou da hora de passar pano a quem não cumpre ordens.

Num mundo onde o olhar passou a acarinhar mais que abraços, lágrimas correm todos os dias.

Números são contabilizados diariamente. De mortos, de infetados, de desafortunados que perdem.

Tudo ou nada.

Num mundo onde quem ainda tem os avós é privilegiado.

Num mundo onde os mais velhos deixam, aos poucos, de existir.

Num mundo que ficará para sempre com histórias para contar.

Todos relembraremos esta nova era.

Assim espero, pelo menos.

Todos assistiremos diariamente a velórios e funerais dentro do coração porque não nem há igrejas que suportem estes números.

Não há coração que aguente tanto caso, não há alma que não esteja infetada nos dias de hoje.

Num mundo onde os 2 metros de distância passaram a ser o novo beijinho e modo de cumprimentar, há quem não os respeite ainda.

Não há eufemismos que ainda façam sentido. Ou que ainda possam ser utilizados.

Não existem mais hipérboles no mundo em que vivemos.

Porque cada dia é um verdadeiro milagre.

Assisti a funerais que nem chegaram a acontecer.

Despedi-me de longe com o coração apertadinho.

Porque nem perto me deixaram chegar.

Assisti, na linha da frente, a hospitais a abarrotar, famílias a chorar de desespero, mortes lentas, dolorosas.

E não passaram de mais um número entre os milhares que aparecerão no telejornal no dia seguinte à hora de almoço.

Uma verdade que custa mais a engolir que uma refeição má.

Despedi-me de longe de quem tanto queria por perto.

Tudo à distância.

De um telefonema, de um olhar, de uma cara coberta por uma máscara que custa a manter.

Chorei lágrimas infinitas por quem nem partilha o mesmo sangue que eu, por quem, muitas vezes, nem cheguei a conhecer fora deste cenário alarmante, por quem fiz de tudo para dar os últimos momentos de paz.

Estive na linha da frente para tentar, inocentemente, travar uma guerra que já está ganha.

E, para quem não gosta de spoilers, a este ritmo, perderemos.

Tanto…

Perdi a fé centenas de vezes.

Mas permaneci.

Sempre.

Debaixo de 2 máscaras e uma farda que cheira a suor diariamente, debaixo de uma noite de sufoco e almofadas molhadas, debaixo de não poder ir ver os meus avós há semanas, debaixo de um peso nas costas (mesmo sem ter culpa) maior que chumbo.

Jurei aguentar firme. Jurei que iria passar.

E passará, eventualmente, mas já se perdeu tanto.

Danos que serão sempre irreparáveis, vidas que jamais voltarão, saúde, amor.

Já pensei em desistir.

Tantas vezes, incansavelmente, olho no espelho e digo “bora, mais um dia” com lágrimas nos olhos.

Todos os dias.

Há quem fungue e se contorça todo por ter de ficar o fim de semana inteiro em casa.

Eu só peço a Deus para me permita ficar no aconchego da minha cama mais 5 minutos, eu só peço a quem quer que seja que esteja a comandar isto tudo cá em baixo que passe logo, que seja breve, que tenha piedade dos mais fracos, pelo menos.

Os paradoxos que fazem de nós seres humanos.

O mundo novo em que vivemos…

Nota sobre a autora:

Rita Gomes,

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2 comentários em “O mundo novo em que vivemos

  1. Um coração que sofre o tempo que deseja ver passar, uma alma que grita no silêncio abafado pela dor e a impotência. Obrigado por tão bom texto.

  2. O texto é o nosso dia a dia e a emoção como escreve é de alguém que esteve e continua na linha da frente.
    Posso dizer que me arrepiei a ler.
    Porque é tão verdade tudo o que diz e a forma como a cada dia vai à luta.
    Um bem haja e muito obrigada.

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