O grito da rádio e o amor

O grito da rádio,

longos dias tinham os meus 14 anos, após uma drástica mudança de vida (apenas se tratou de uma alteração de morada), ali me encontrava eu, adolescente, maioritariamente incompreendida e convincentemente triste.

Aquele lugar novo tinha uma energia que eu não compreendia ,tudo dentro daquelas paredes iria mudar para sempre o que eu conhecia como sendo certo até ali.

Dificilmente tinha visitas de amigos ou família, o meu pai vivia numa espécie de castração emocional, pensando ele que ao não conviver com a restante família e amigos seria a terapia necessária para compor seu passado muito desassossegado.

Cresce e floresce ali uma miúda de 14 anos com uma enorme vontade de rebeldia social, num espírito bélico vão-se idealizando estratégias para se libertar do sufoco que lhe pesava o corpo mais muito mais a alma.

Eram tempos diferentes relembrava-lhe a avó, já um tanto cansada de viver mas ainda com energia para debitar uns quantos chavões sobre os tempos em que ela, adolescente de 14 anos, nada poderia fazer com a sua própria inquietude! Mesmo que não admitindo em voz alta era tão ou maior que a daquela miúda, ainda assim, sempre que podia a ia punindo por atos ou palavras.

Tentavam encontrar um meio caminho para se entenderem sem se ferirem (muito). O silêncio, foi grande parte das vezes a solução quando ambas necessitavam falar.

Por timidez, eu escondia o turbilhão de ideias tantas vezes impróprias dada a sua “tenra” idade e a minha avó silenciava as recordações dos momentos em que também desejara por mais, recordações onde ansiava pela liberdade, coisa “essa” uma utopia há data da sua adolescência.

Viveram-se tempos em que o simples respirar de ambas era sinalizado com escrutínio da outra parte, o ritmo do balanço molecular de cada sopro eram sentidos como facas rasgando a pele interrompendo a harmonia dos nossos silêncios.

E ali ficávamos deitadas partilhávamos o mesmo quarto, com duas camas estreitas (agora me lembro), a ouvir um rádio com leitor de CD (imagine-se) até que o sono viesse para ambas.

Lembro me que ela adorava ouvir rádio, pousado no chão do quarto junto da janela, talvez porque aquela caixa de plástico fora outrora um veículo blindado de flores que lhe concedera a tal liberdade.

Aquelas noites eram especiais sem que eu soubesse o quanto me iriam fazer falta mais tarde, a minha avó tal como grande parte da sua geração apenas compreendia a língua de Camões, não percebendo vez nenhuma as letras das musicas em outras línguas que eu cantarolava ali ao seu lado, tentando acompanhar o rádio.

Ela era a mais feliz, mesmo sem saber disso, porque até que não percebendo nada do que a letra da música, ela de forma bem primitiva usava apenas o dom de escutar a sua compreensão literal.

Que inveja eu sinto daquela sabedoria mascarada de inocência.

Amar algo tão profundamente sem o compreender na sua totalidade é quase um Superpoder que ela detinha.

Eu não, eu estava sempre desperta a tentar decifrar a letra da música, “encaixando” cada refrão num momento da minha vida, como se dali fosse retirar um conhecimento profundo. Em autoanálise exigia da musica uma solução ou pior uma identificação com a minha realidade, num exercício compaixão na minha existência.

Na verdade, ouvir o rádio é bem mais do que tudo aquilo que eu fiz com aqueles momentos a duas.

Ai, se eu tivesse percebido o quão mal aproveitei maior parte do tempo em que partilhávamos a mesma música, ela apenas se deixava levar pela melodia para embalar os seus sonhos, numa paz e serenidade que me fazia tanta inveja.

Hoje aqui sentada, abrindo todas as memórias daquele quarto, vejo-te a ti, deitada e serena a olhar-me com ternura e amor. Quero dizer-te que ainda ouço rádio todos os dias, ainda canto para o acompanhar, mas já não lhe exijo respostas, penso que aprendi a me amar.

Nota sobre a autora: 

O meu nome é Márcia Perdigão, tenho 33 anos e vivo no Porto. Atualmente estou desempregada mas maior parte da minha carreira profissional foi como comercial, ou seja contato direto com pessoas. Desde muito nova que tenho o gosto pela escrita, confesso que nunca me especializei em nada que tenha haver com a escrita. Apenas escrevo, livre e fiel ao que sinto, sempre!

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1 comentário em “O grito da rádio e o amor

  1. Adorei a história. Parabéns. Fica o conselho embora n o tenha pedido, escreva sempre vai ter muito sucesso. É eu sou bem difícil de conquistar pela escrita.

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