O Dia Em Que Me Morreste No Colo…

No dia em que me morreste no colo, o sol nasceu na mesma, o teu galo cantou igual, os pássaros voaram como todos os dias de árvore em árvore, mas nesse dia tu já não acordaste. Acordei eu, contigo a meio da noite, para ouvir a última respiração, o teu último pulsar de vida. Nesse pulsar agarraste-me as mãos e assim ficaste. As tuas mãos eram grandes, capazes de tudo, calejadas e moldadas de uma labuta pesada. Tinhas ainda aquele olhar doce, mas nas rugas notava-se a tristeza de quem enterrou os pais, o amor da vida e como se não bastasse mais um filho. Quando eu nasci, disseram que renasceste e continuaste a viver, com a esperança de que um dia se iriam reencontrar, no céu, acreditavas tu.

Contavas-me todas as noites as histórias deles e a tua. A tua história de amor com o meu avô que morreu ainda antes de eu nascer. Muitos anos depois encontrei no teu sótão os escritos dele e compreendi-me melhor.

Nessa noite confidenciaste-me que sentias que o encontro estava próximo e que quando isso acontecesse eu não podia ficar triste. Era sinal que tu os tinhas reencontrado. E que estavas feliz. Assim, quando me morreste nos braços, num colo que anos antes me tinhas dado, eu abracei a tua morte. Senti algo que mais tarde consegui traduzir numa palavra – transcendência. Ao contrário de todos naquela casa e nas próximas, eu segui como a natureza toda de fora daquela janela e fiz acontecer a minha vida. No dia da tua morte. Do alto dos meus 11 anos eu quis ir à escola, e durante dois dias estive numa bolha mágica que me fez sorrir naturalmente quando me pintaram a cara de índia, pois foi em fevereiro e era Carnaval.

Eu escolhi que não te queria ver ir para debaixo da terra, porque intuía que não eras tu que estavas ali, mas nesse fim de tarde, o universo pregou-me uma boa partida e quis que eu visse o teu corpo uma vez mais e numa sincronia perfeita, o meu autocarro da escola parou para que o teu funeral passasse e aí com a mão no vidro e a minha cara de índia prometi-te que ia ficar bem, que ia ser tudo o que me ensinaste e muito mais, e senti no fundo do meu coração, que estavas feliz e em paz.

Nota sobre a autora

Sou a Sofia. Sou professora de crianças e aprendiz das coisas do mundo. Escrevo porque me ajuda a pensar. Tenho muitos sonhos. Escrever é o mais complexo e o mais simples.

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