Mar Verde

Nunca pensei ficar imersa em tal amor, ele veio inusitadamente rápido, teve um jeito artista de envolver, cirúrgico e indubitável, ao mesmo tempo que foi silencioso, até gritar. Mergulhei-lhe nos olhos verdes como quem se atira ao mar, livre, solta, sem chapinar. Fui em embraiagem desengrenada, em ponto-morto e muito vivo. A submersão foi com vontade, contudo, a corrente, que me parecia completamente dentro do meu controlo, começou a dar indícios de alguma reviravolta e, sem que me apercebesse, as águas começaram a fixar-me ali, numa espécie de vegetação submarina movediça.

Esta profundidade de amor esverdeado, onde ainda me encontro, foi-se escavando transparente e dissimulada no tempo. Nadei, afligi-me, e afoguei-me muitas vezes, até poder renascer, e continuar a nadar. Percorri cavernas, muitas vezes sem luz, e vi fauna e flora que não conhecia, reconheci recantos, mais ou menos tenebrosos, aprendi muitos outros, mais ou menos idílicos. Procurei a saída frequentemente, mas, por alguma razão, fui-me habituando ao escuro das profundezas, e o lado de fora encandeava demais. Fui ficando enquanto nadava mais do que boiava.

Hoje permaneço sem fôlego, estou à deriva no oceano imensamente cru, e distante, onde ele me deixou. Nado crawl, bruços, costas, tento todo e cada truque de salvação de que me lembro, mantenho os olhos vigorosamente fechados, revivendo cada memória prodigiosa e bonita que pudemos partilhar. Quando de facto tento desafiar e espreitar devagarinho a luminosidade exterior, vinda do céu, é tão forte que não consigo lidar… A única luz que me permito é a tua e, então, estou à deriva outra vez.

Ele apareceu com sol, calmamente, vindo do nada, do momento zero, naquele dia em que nada acontece, nem as árvores mexem. Veio a sorrir, atendeu-me numa caixa de pagamento, mostrou-se um tipo delicado, gentil, mais uma cara entre tantas. Enquanto pagava, observei que tinha uma tez muito branca, como a neve. Parecia fria também. Porém, e paradoxalmente, mostrava uma atitude calorosa no trabalho de balcão, abrupta, desenvolta em cada movimento. As palavras para os colegas eram curtas, medidas, meticulosamente escolhidas, tácitas, numa pauta melódica, que fui registando, muito sem me aperceber, na altura.

E então vieram os olhos, oh os olhos … aquele retoque verde-mar fresco na cara, um olhar pintado e desenhado, que me procurava e fitava continuadamente, e que pincelava aquela minha tarde quente e pálida…

Voltei lá, conversámos uma primeira vez. Reparei em todos os pormenores daquela figura, e percebi que nunca até então eu tinha reconhecido beleza escondida onde não explorava, por exemplo nos cabelos fartos e embaciados, quase sem cor. Afinal abraçavam-lhe um rosto tão bonito, confesso que não estava preparada para aquilo. Comecei a olhar e a ver. Ele percebeu e batizou-se o início do mergulho. Rimos, muito, alto, ligamo-nos por dentro. Quando ele me deu a mão e o senti, o momento foi em câmara lenta: ele era tão quente, a pele revelou-se aveludada, numa cor única, o branco e o bronzeado, o dourado. Eram mãos trabalhadoras, de contornos sensivelmente femininos, jamais as larguei. Cada dedo tinha uma história do dia, ocupado, dedicado ao serviço, comecei a lê-los tal e qual um livro encantado, um após outro, unha com unha, capítulo após capítulo. Passei a desejar que também escrevessem histórias minhas, que em riste entrassem em mim e descobrissem o meu corpo, por dentro, todos os meus volumes, e que dissertassem algumas linhas.

Ele entrou e descobriu um lugar paradisíaco desconhecido, onde ficamos os dois, inebriados, em resgate pleno da agitação de desejos imprudentes que floresciam por todo o lado, em nós. Ele segurou-me tão peremptoriamente que, naquele exato momento, eu entendi a poderosa batalha de amor a que estávamos prestes a ceder. Dançámos agarrados, numa fisico-química fortuitamente intensa. Ele adentrou-se até ao fundo de mim, penetrou todos os meus sentidos, especialmente a minha mente. Invadiu tudo e eu deixei. Permiti-lhe o caminho à minha alma, apalpando a dele também.

Nós sempre queremos que a reciprocidade aconteça, esculpimos os momentos para que a combinação seja tão perfeita, para que dure para sempre, desejando e navegando todas as marés interiores, a surfar com prazer águas emocionais que jorram incessantes. O cheiro, os sons, a força, fosse onde fosse, uma página escrita a relevo em dois corações, oh, a maneira como fizemos amor…

Nota sobre a autora

Marta Almeida.

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4 comentários em “Mar Verde

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