Luta Pandémica num Livro de Receitas de Natal

Escrevo neste livro de receitas de Natal, não somente pela casualidade de estar aqui na minha cabeceira, mas também pela ténue esperança de voltar às vivências aprazíveis, preenchidas e repletas de breves instantes de pura felicidade que a época natalícia me recorda.

Hoje saí à rua pela primeira vez em dez dias, estava tudo igual e tudo diferente. Pernoitavam os mesmos prédios, as mesmas árvores, os meus caminhos, as mesmas gaivotas enraivecidas, as mesmas paredes vestidas de tinta sem arte, o mesmo cheiro, o mesmo ar.

Mas faltava-lhe luz, a luz das gentes a rechear as ruas, a luz dos barulhos ensurdecedores dos carros, a luz das conversas e de genuínas gargalhadas entre amigos. Faltavam as crianças a correr livremente, o senhor do talho, o padeiro simpático e a vida, faltava-lhe vida!

Mas mesmo neste vazio silencioso, mesmo nestas ruas despidas, eu senti luta.

Luta daqueles que ficam em casa, luta daqueles que não visitam avós, pais, primos, tios ou amigos. Luta daqueles que evitam sair livremente porque não pensam só neles, mas também nos outros. Luta daqueles que acreditam que todas as histórias têm reviravolta e esta certamente será uma delas. Luta daqueles que sabem que os seus gestos podem fazer a diferença. Luta daqueles que se previnem sem saber o destino, mas com a esperança de salvar a humanidade. Luta daqueles que acreditam que o sacrifício de hoje pode ser o sucesso de amanhã.

Esta luta, também é dos mais pequenos, que mesmo sem entender a invulgaridade deste momento, invadem as varandas com cartazes carregados de amor inocente retratado em mensagens apaziguadoras como “Vamos todos ficar bem” ou “Força e Alegria”.

A todos me junto nesta luta. Não saiu à rua a meu belo prazer, não visito os meus avós, pais, primos, tios ou amigos, não vou passear à praia, não vou ao pão constantemente, não vou ao supermercado comprar aquelas bolachas com pepitas de chocolate só porque me apetece, nem vou buscar aquele creme X só porque sim!

A eles me junto, àqueles que não perdem a esperança mesmo sendo este o cenário mais negro, obscuro e incerto do século.

Dói pois, dói muito não vermos, não sentirmos, não tocarmos, não abraçarmos quem amamos! Doí não fazer do que amamos o nosso dia-a-dia, doí adiar planos, metas, sonhos ou até mesmo ilusões!

Mas também sei que doerá demais se mais tarde não tivermos quem abraçar, amar ou sentir. E se essa dor nos fizer parar no tempo, se nos fizer estagnar planos, metas e sonhos? De nada somos feitos e nada poderemos fazer depois.

Há minutos que se me invade a revolta e me questiono vezes sem conta “Até quando?”. Até quando irei suportar a prisão à qual me submeti mesmo sendo por escolha própria? Breves e efémeros segundos estes que se desvanecem quando me ilumino com um único pensamento: “Se depender de mim, a vida de outros não será apenas um número, e se para isso é apenas necessário o refúgio no meu próprio lar, pois que assim seja!”.

Permanecerei aqui, até que os sacrifícios se convertam numa vitória, uma vitória de uma guerra com inimigo, sem corpo.

Escrevo, de modo a varrer tudo isto da memória com a mesma brevidade que este meu passeio de hoje. Escrevo com a esperança de recordar sempre cada ingrediente, cada recheio ou cobertura e, sobretudo, cada momento vivido na composição deste livro de receitas de Natal.

Márcia Carvalho

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1 comentário em “Luta Pandémica num Livro de Receitas de Natal

  1. Que assim seja a esperança de viver e de pensar que afinal somos todos necessários.
    Teremos 2 inimigos :
    O invisível que é 1 microrganismo o outro é aquele que o homem impoe pela instabilidade económica que causa as pessoas, depois de precisar delas….
    Voltará obrigatoriamente a precisar e a procura-las.
    As ruas voltarão a ter pessoas porque todas elas são necessárias para fazer existir qualquer cidade.

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