Gostava de dançar uma última vez

 

Sou a Arminda, tenho 92 anos. Esta casa, onde vivo desde os 40, já esteve cheia de gente. Marido, filhos, amigos, muita família. A minha casa era Quartel General da Alegria de todos. Eu era nova, tinha muita energia, enchia a mesa da sala de petiscos, o gira-discos tinha sempre música a tocar e, à noite, chegava  a dar oito abraços de Bons Sonhos; oito camas feitas por mim.

Tenho 92 anos e tudo desapareceu.

O desaparecimento das pessoas começou quando o meu marido adoeceu, aos 67 anos. O Alzheimer tomou conta dele. No princípio, as pessoas ainda apareciam. Mas depois… os netos eram pequenos e os meus filhos não os queriam expor aos constrangimentos da doença do avô. As visitas foram escasseando, uns tempos depois a notícia de propostas profissionais noutros países. Daí ao telefonema apenas aos Domingos foi um passo. O meu marido acabou por morrer depois de um longo calvário de 15 anos, mas as pessoas já não voltaram. Não voltou ninguém. Instalou-se o silêncio cortado apenas pelo rodar dos ponteiros do relógio grande da sala; o mesmo relógio que não se conseguia ouvir quando a casa fervilhava de gente e alegria. Onde estão as pessoas que comiam à nossa mesa? Não sei.

A vizinha Catarina interrompe-me o silêncio uma vez por dia. É muito minha amiga, esta vizinha. Veio para o prédio viver com a sua filha Maria. É mãe solteira de uma menina de 4 anos muito viva e doce. Ela não me pergunta sobre a minha solidão, eu nada lhe pergunto sobre a dela. Todos os dias se senta um bocadinho na minha sala e conversamos. Também ficamos em silêncio enquanto a menina brinca com a minha coleção de caixas antigas, mas quando o silêncio é partilhado não dói tanto. Quando a vizinha Catarina toca à campainha, por momentos, deixo de ouvir o rodar dos ponteiros do relógio grande da sala.

À noite tenho sempre o mesmo sonho, durmo sempre a mesma saudade: eu e o meu marido, novos e apaixonados, a dançar muito abraçados no dia em que comprámos o gira-discos que está na sala. Era novo em folha, agora é velho. Tinha música, agora é o retrato do silêncio.

Um destes dias a Catarina perguntou de podia pôr um disco. Fingi que não ouvi. Não sabia o que dizer.

Mas fiquei a pensar e vou deixar. Gostava de dançar uma última vez, mesmo sabendo que as pessoas não voltam.

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