Fim do mundo

Em março do ano passado foi declarado fim do mundo.

Ficou meio que subentendido, mas foi.

Para os dinossauros foi um meteoro, para diversas espécies animais foi caça e ser humano, para nós foi um vírus.

Pediram-nos para ficarmos em casa.

Nada mais.

Nada menos.

Pediram-nos que tivéssemos cuidado, que usássemos máscara na rua, que evitássemos contactos mais que os estritamente necessários.

Que desinfetássemos e lavássemos as mãos tanto quanto possível.

E nem isso soubemos fazer…

A raça humana farda de ser a raça superior, a mente superior, a palavra superior.

Sempre superior.

E não fomos capazes de superar nada…

Em março do ano passado fomos todos (ou pelo menos a maioria deveria ter ficado) trancados em casa.

Contra a nossa vontade.

O governo falou. Por uma vez, pelo menos, falou.

Veio medo. Muito medo.

Do amanhã que para muitos não chegaria (e não chegou), de perder tudo (e perdemos), de ficar sem emprego (quantos ficaram já…), sem rendimentos, sem pessoas.

Entretanto, acabou março e o confinamento.

Foi posto numa balança desigual dinheiro versus saúde e vidas humanas.

E adivinhem…

A raça humana nunca deixou de me surpreender.

Muitos de nós saímos à rua pela primeira vez (outros nem a isso se dignaram).

Conheço inúmeros casos que não respeitaram ordens expressas do governo, mas não é disso que quero falar…

O mês de março chegou ao fim.

E com ele trouxe uma espécie de luz ao fundo do túnel.

Uma luz ilusória, como bem sabemos hoje, mas já havíamos sido avisados.

Enfermeiros, médicos e todos os que foram obrigados a ficar entre quatro paredes para tentar travar uma guerra que sabiam desde sempre que estava perdida, avisaram. Tanto.

Avisaram todos os dias,

A toda a hora.

Serviram de médiuns, de bolas de cristal.

Eles sabiam todos e cada um deles.

Não foi por falta de aviso. Nunca foi.

Não me mal interpretem, não vou ser hipócrita a ponto de afirmar que cumpri à norma 10 meses de isolamento.

Fiz o que pude, na medida do que pude, enquanto pude.

Sou doente crónica. O meu caso é outro.

O medo que sinto nada tem a ver com o dos meus amigos saudáveis.

Tenho avós com idades avançadas e, tal como eu e tantos outros, doentes.

Senti na pele o receio que eles sentiam (e muitas vezes, por falta de conhecimento, por demasiada fé em deus e nas missas, não sentiram) mais do que o meu próprio.

Sou (quase) enfermeira.

Fui mandada quase à força para longe da minha casa, dos meus pais, dos meus animais de estimação e dos meus avós.

Não beijo a minha avó há dois meses (desde a última vez que me espetaram um cotonete até ao cérebro).

Ela nem se deve lembrar da minha cara que está debaixo de uma máscara que é mudada todos os dias.

Ela nem se deve saber o tanto que choro dentro dela…

A idade avança e não sei até quando ela aguentará…

Sou (quase) enfermeira.

Mandara-me para hospitais a abarrotar, a desmoronarem-se.

Vejo diariamente gente morrer, a sofrer. Tanto.

A chorar. Tanto.

É triste, eu sei. Também choro mais do que deixo transparecer, mas é tarde demais para isso.

Vejo diariamente pessoas a quem a sina ainda não tocou à porta e que, por isso, se acham no direito de deitar fora quase um ano de trabalho.

Repudia-me o ser humano.

Repudia-me a sua falta de noção e de compaixão pelo outro.

Sozinhos não vamos a lado nenhum.

Fomos todos avisados.

Todos sabíamos o que se passava dentro dos hospitais.

Uns mais, outros menos.

É sempre mais confortável virar a cara.

Todos fomos vendo partilhas de experiências e textinhos bonitos.

Já não é hora disso.

É hora da realidade. A que se passa à frente dos nossos narizes e que nos negamos a aceitar.

Vamos todos morrer.

Os meus avós vão morrer por falta de cuidado de alguém com quem tiveram infelicidade de se cruzar.

Já tanta gente morreu. E tanta que ainda morrerá a este ritmo.

Eu provavelmente vou morrer a fazer o meu papel.

Fomos todos avisados da extinção de uma nova espécie, a nossa.

E nem aí tivemos cuidado.

TODOS decidimos continuar a ignorar ordens divinas.

E os que deveriam mandar nisto tudo, continuaram a encher bolsos e a tapar buracos (mas também não é disso que quero falar).

TODOS ignorámos o que se passava à nossa volta.

Quem trabalha, quem está a morrer, que, infelizmente, foi sacrificado em combate, quem já perdeu tanto, quem ficou sem nada, quem seguiu tudo à letra.

Choramos agora com a situação atual.

Assusta, faz chorar.

Lágrimas de crocodilo não me comovem mais.

Tanto que os que referi anteriormente já choraram….

Até uma próxima, conterrâneos.

O fim do mundo e o verdadeiro caos estão instalados.

A sépsis não tem cura.

Nota sobre a autora:

Rita Gomes, https://wordslu.blogspot.com/2021/01/fim-do-mundo.html

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