Fim Ao “Princípio”

“Teve um princípio de AVC”. Esta é uma expressão relativamente comum – na verdade, bem mais comum do que gostaríamos. Por dois motivos: em primeiro lugar, porque continuamos na linha da frente das doenças cardiovasculares; em segundo lugar, porque…a expressão está errada!

Com três letrinhas apenas…

Em primeiro lugar, vamos esclarecer conceitos: a sigla AVC significa Acidente Vascular Cerebral e este, de grosso modo, acontece quando o sangue se vê impedido de chegar a uma parte do nosso cérebro, seja porque há entupimento de um vaso (AVC isquémico), ou porque há uma artéria que se rompe (AVC hemorrágico). Neste sentido, e de forma muito direta, só existem duas hipóteses: ou o AVC acontece ou não acontece. Parece-lhe trivial esta consideração? Mas olhe que talvez não seja assim tanto, sobretudo se pensarmos, lá está, na expressão “princípio de AVC”. De forma errónea, esta designação leva-nos a pensar numa espécie de AVC que começa, mas depois cessa, o que, clinicamente, não existe.

Na realidade, nesses casos, o que aconteceu foi um evento quase-AVC, aquilo a que chamamos AIT – Acidente Isquémico Transitório.
Esmiuçando o nome, consiste numa interrupção do fornecimento sanguíneo a determinada zona do cérebro (isquemia) durante apenas alguns minutos (transitória). Apesar de ser também uma emergência médica e de poder apresentar-se com sintomas muito semelhantes, um AIT não é um AVC, e existe uma diferença entre ambos que merece particular destaque: os sintomas do AIT são temporários, ou seja, duram entre minutos a horas e depois desaparecem completamente (geralmente até às 24h após-evento), ao contrário do AVC que, por norma, deixa sequelas.

Sorte de principiante!

Embora pareça provocadora (e seja, de facto), esta afirmação não deixa de
ser verdadeira: o AIT é um sinal claro da existência de um risco aumentado de, no futuro, poder vir a ocorrer um AVC. E nem todas as
pessoas têm a “sorte” de que o “princípio” das manifestações da sua doença cerebrovascular seja transitório e sem repercussões físicas e/ou cognitivas.

É por isto que, perante um AIT, o médico que prestar assistência irá avaliar de forma o mais concreta possível qual é, efetivamente, o risco de que aconteça um acidente vascular mais grave nesse indivíduo, agindo depois em conformidade com essa avaliação, no tratamento e orientação do caso.

Posto isto – e porque certamente tem preparativos natalícios para ultimar – gostava que daqui retivesse o seguinte: fim ao “princípio de AVC”, porque do que falamos é de AIT.

 

Nota sobre o autor

Francisco Santos Coelho, 28 anos de idade. Entusiasta pelo trabalho com e para os outros, sou atualmente Médico a fazer a formação específica em Medicina Geral e Familiar – aquela que, para mim, representa o expoente máximo dessa interação e dedicação.

Considero-me um “médico para lá da bata”, envolvido por vários complementos a esta arte que escolhi para a minha vida e que me enriquecem de forma inquestionável dentro e fora do seu exercício. Acredito verdadeira e entusiasticamente no lema da casa em que me formei e que defende que “um médico que só sabe Medicina nem Medicina sabe” (Letamendi).

Nascido, crescido e pré-graduado na cidade de Penafiel, foi dela que parti depois para todas as outras onde aprendi e vivi muitas experiências que tanto me acrescentaram. Tenho encontrado a certeza de que devemos ser e saber mais para o mundo, mas que só o conseguimos quando somos e sabemos mais sobre nós mesmos. É o maior desafio de todos. É o que procuro.

Ah! Porquê a escrita? Eu explico. Na Medicina, porque é uma forma ainda eficaz de esclarecer dúvidas, desfazer mitos e (in)formar efetivamente em saúde – e falo de saúde como um processo partilhado e participado de ambas as partes. Fora da Medicina, porque escrever é quase-eternizar, é acrescentar som ao silêncio, ainda que o silêncio, sabiamente, não deixe de se fazer ouvir.

 

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