E se?

13 Setembro 2005. Faltavam 1 ou 2 dias para terminar a licença de maternidade do João Maria. Primeiro filho. Primeiro sobrinho. Primeiro neto dos meus pais. Estava tudo bem. Estava tudo muito bem. Almocei em casa dos meus pais com a minha mãe e o meu irmão. Com o João Maria na cadeira do carrinho no chão da cozinha a sorrir para nós. E a minha mãe a dizer para eu pôr a cadeira em cima de uma cadeira da cozinha. E eu a dizer que no chão é mais seguro. Foi sempre um bebé tão fácil. Levava-o comigo sempre para todo o lado.

A minha mãe nessa altura fazia muitas feiras mas naquele dia estava em casa. Almoçámos os 3 bacalhau de cebolada da churrasqueira de São Domingos. Não sei se, passados 13 anos, 3 meses e 2 dias, mais alguma vez voltei a comer bacalhau de cebolada. Talvez até nunca mais me apeteça. Mas apetece-me sobretudo que a minha memória guarde todos os pormenores desse dia. Volto muitas vezes a eles, a esse dia. Hoje de manhã voltei e por isso os quis registar. Parte deles. Aqui. E se precisar deles sei que estão aqui. Foi a última vez que vi o meu irmão.

Durante o almoço perguntei-lhe há quanto tempo não andava de mota. Não sei porque perguntei. Ainda hoje me arrependo de ter feito essa pergunta. E se… ? Há dias em que tenho receio de ter feito essa pergunta com algum gozo. “Então, compraste a mota e agora nunca andas nela?” sabem como são estas coisas de irmãos, meio provocar, meio implicar. E ele com aquela serenidade doce respondeu-me “não tenho tido dinheiro para a gasolina”. Mas nesse dia teve. Chegou por correio uma carta com um reembolso do IRS e ele pensou logo ir atestar a mota. E se… ?

Passei a tarde em casa com a minha mãe. O meu irmão tinha o quarto muito desarrumado. Acho até que estava pouco limpo. O João Maria adormeceu e eu arrumei e limpei o quarto do meu irmão, que em tempos tinha sido meu também. Ainda havia fotos minhas na cortiça pendurada na parede. Não sei se desleixo dele ou se gostava de ter ali as minhas fotografias. A minha mãe contou-me que ao final da tarde, quando chegou do trabalho, o meu irmão nem quis entrar no quarto. “Mãe, vou andar de mota, nem vou entrar no meu quarto para não o desarrumar. Até já, mãe.” E se… ?

O acidente aconteceu cerca de uma hora depois. Faleceu no local.

Foi a minha mãe que me contou. Por telefone. Ainda hoje me assusto com alguns telefonemas. E a minha mãe também. E o meu pai também. Todos recebemos a notícia por telefone. 

14 Setembro. Um dia depois. O meu pai quis sair cedo para ir comprar uma camisa toda preta. Vestiu-a logo na loja. Não lhe ficou nada bem. Para além de estar muito amarrotada e ter as marcas das dobras da prateleira da loja, era feia. Foi a camisa mais preta que eu vi até hoje. E se calhar a mais feia. Há dias que os olhos do meu pai ainda reflectem o preto dessa camisa. E as dobras também. Está tudo reflectido nos seus olhos. E eu não sei se sou só eu que vejo ou se as outras pessoas também vêem. Talvez algumas vejam.  Já com a camisa preta vestida e a minha mãe vestida de preto também, e o João Maria com 5 meses feitos nesse dia entregue às amas que tomaram conta do meu irmão há 22 anos atrás, fomos os 3 – todos juntos agora já não éramos 4, éramos 3, mas para os 3, vamos sempre ser 4 – à Escola Prática de Cavalaria pedir a um primo nosso que levasse a notícia de nós os 3, de nós os 4, até à terra da minha avó. Seria muito doloroso ter de ligar a todos. À porta da E.P.C. o meu pai encontrou um amigo que lhe deu um forte abraço ao mesmo tempo que lhe dizia “É a vida, Costa. É a vida”. E eu no carro a pensar que era tudo menos a vida. Que a vida seria estarmos ali os 4. Embora que, para nós os 3, sejamos sempre 4, ainda dói (muito) só estarmos os 3.

[continua…]

Conseguem ver a argola no furo de cima?

Nota sobre a autora

Em 2006, um ano depois do meu irmão Pedro, com apenas 22 anos, morrer de acidente de mota, criei o blog – https://oteutiopedroblog.com/- para falar dele ao João Maria, na altura o meu único filho. Hoje, o João Maria é o mais velho de 3 rapazes, os meus 3 Marias: o João, o Pedro e o Zé. Durante algum tempo o blog foi exclusivamente sobre o Tio Pedro. Passados 10 anos apeteceu-me escrever um bocadinho sobre tudo e muito sobre nada e o nome do blog manteve-se. 

Tenho material do bom em casa, histórias nossas que podiam resultar em algumas gargalhadas aí desse lado, mas tenho também três filhos que já sabem ler e não gostam que conte nem um terço da acção que por aqui se passa. E eu respeito. 

Não escrevo diariamente, nem sequer semanalmente. Só o faço quando tenho realmente algo de especial para partilhar e que possa inspirar alguém.    

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1 comentário em “E se?

  1. Oh, Patrícia, beijinho. Lembro-me tão bem do dia em que se soube! Foi no dia seguinte. Após vários anos, eu tinha reencontrado a sua mãe e, de certo modo, também o Pedro. Ambas tínhamos trocado, quais galinhas vaidosas, fotos dos nossos pintainhos: duas raparigas e dois rapazes (dois Pedros) que tinham crescido e que continuavam pequeninos como ainda hoje são para nós. Nesse dia, a notícia chegou até mim em ondas de choque e incredulidade. Eu só conseguia lembrar, como ainda hoje, quando a leio, aquele menino deliciosamente loirinho e lindo, sentado na sua carteira de uma sala de aula. Ali, doce e calmamente. Um menino com o futuro nos olhos. É assim que recordo sempre o Pedro. Grande beijinho para ele. Outro para si.

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