É difícil sonhar neste país para todos

Without dreams and goals there is no living, only merely existing, and that is not why we are here”, disse Mark Twain. Já tinha saudades de ter um fim de tarde inteiro só para mim, e para o meu prazer nada secreto, escrever. Estou sentada em pernas de yoga em cima da minha cama elefante, e de janela entreaberta resvala ao sol que me faz sonhar com a pele de verão que eu nunca tinha visto. Ao mesmo tempo que escrevo, ouço poesia, poesia negra, e inspiro-me em cada luta. Toca John Coltrane, “My Favourite Things”, e das cortinas que dançam o seu jazz, explodem as perguntas que eu só tenho coragem de fazer às páginas brancas, sem receber vozes de volta. Não sei incomodar os outros com os sopros que vivem dentro do meu peito. Tenho vergonha longa. Indiscutivelmente se o meu nome fosse alto, aí todos me iram ouvir, reconhecendo a minha voz à altura dos privilegiados. A invisibilidade dentro do meu próprio país tornou-se ordinariamente pesada, e já não há forma de a contornar, a não ser fugir para fora. Somos muitos atores, e hoje eu duvido se alguma vez irei pertencer a essa casa e família, ao teatro, aos atores. Raramente me senti incluída, raramente fui aceite para projetos, raramente algum colega me quis ajudar. Nunca vou entender porque é que as pessoas não se ajudam umas às outras, sejam artistas ou empregados de mesa. Hoje chega-me à memória os atores que cambaleiam, e se recolhem dentro de um desespero amargo por lhes faltar as tábuas debaixo dos pés nesta paragem forçada. Sentem hoje em carne crua, a tristeza aveludada que lateja dentro de mim há mais de 8 anos. Sem palco para voltar, sem público para abraçar, sem aplausos para arrepiar os meus cabelos ainda por nascer. Atores que descobrem hoje esta ferida aberta no que lhes faz pulsar a vida, que a mim já me faz falta há demasiados anos, e é por vos perceber, que se pudesse, entregava-vos os palcos todos, para que essa carência não vos fizesse temer o sonho a desfazer-se entre os dedos trémulos de um choro incessante. O medo de não criar de novo. Não há dia mais triste do que aquele em que se é obrigado a ver um sonho morrer. Nunca me senti parte de nada, de algo que eu quisesse muito, mas continuo a levantar-me da cama, a trabalhar diariamente num lugar que sinto não me pertencer, porque a vida tem de continuar, e como diz James Baldwin, “Não posso ser um pessimista, porque estou vivo”. Fui-me tornando dentro desses lugares, do que é possível hoje para mim, e agradeço o que tenho, e o que vivi. Ensino-me a desenvolver uma esperança incurável, para não morrer. Alimento-me do peso da luz que o meu sonho extravasa, para não morrer. Grito por causas maiores que eu, para não morrer, mas às vezes gostava de ter a coragem de desistir de tudo com toda a força de um foda-se, e partir para um lugar sem fuga do lado de dentro. Honestamente não sei até quando durará a esperança, mas se por alguma razão um dia eu não me conseguir levantar da cama, e a esperança se esgotar como uma ampulheta vaidosa, é uma certeza que o meu mundo morreu, e eu morri com ele. Atempadamente peço-vos que deixem o meu corpo beijar o palco antes de ir para cova, e só depois me façam desaparecer em axás de fumo, lembrando que fui alguém que nunca viveu em linha reta, e sempre despistou as ervas daninhas e as águas paradas… Alguém que sonhava voltar ao palco, somente voltar ao palco. Escrevo sobre estes dias, em que é difícil não lembrar os sonhos que não se concretizam, e se afogam na orla branca do mar português. É difícil não lembrar a porrada persistente. É difícil sonhar neste país para poucos. É difícil viver dias sem certezas, e é por isso que os sonhos também se desfazem como múmias egípcias, e as pessoas morrem antes do seu tempo. Sou como o mar, vou e volto, até ao dia em que vou e aqui nunca mais fico.

Nota Sobre a autora: 

O meu nome é Filipa Pina. Sou aprendiz de Humano, nasci no campo, tenho 25 outonos, e formei-me como atriz. O caminho tem sido duro, solitário e longo. Sou curiosa, apaixonada e sonhadora romântica. Emigrei, trabalhei em inúmeros setores fora das artes, chorei e questionei muito o universo sobre o porquê de não conseguir um palco, e na falta de respostas comecei a desenvolver o meu caminho espiritual. Liberto-me no yoga, na corrida e no silêncio. Sou apaixonada por cinema, danço com a alma no regaço e perco-me horas nos livros que me chegam às mãos. Escrevo porque não me sei explicar de outra forma, foi a vida que me ensinou a escrever, foi a vida que me pediu que escrevesse. As palavras tornaram-se a minha casa, é na arte que sou inteiramente eu. Estou desde março a trabalhar numa caixa de supermercado, e em paralelo, a viver uma vida dupla, enquanto escrevo o meu primeiro romance. Sou da família dos pássaros sem gaiola, e dia 6 de setembro, parto novamente para o UK, com uma fúria destemida de abraçar o meu sonho, para que ele não esmoreça ou morra. A arte salva-me todos os dias, a vida por si só não me chega, preciso de poesia, do riso, da dor. Não tenho tempo para morrer. “For an artist, to be normal is a disaster.” – J.Mekas.

Partilhe nas Redes Sociais
FacebookTwitterPinterest

Deixe uma resposta

* Campos obrigatórios