Diário de uma Enfermeira quarentona em tempos de pandemia: Parte XV

Desejo sempre que o anterior seja o último…

Acreditem ou não, mas anseio por fechar este diário à chave e guardá-lo num lugar bem escondido até os netos nascerem. E, quando quiserem ouvir uma história diferente vivida pela vovó eu lhes comece a ler estes pequenos textos que a vida me fez escrever.

Hoje escrevo com a raiva dos números nos dedos (quase 11000 infetados) e um record de pessoas internadas nas UCI. Por favor: FIQUEM EM CASA. USEM  SEMPRE MÁSCARA. PROTEJA-SE A SI E AOS OUTROS.

É com uma vergonha raivosa que percebo que o meu país está no topo do mundo com o maior número de infetados por milhão de habitantes. Adivinhava. Sabia que iria acontecer quando vi as medidas de Natal e Passagem de Ano. Nos corredores do meu hospital todos dizíamos o mesmo, mas não queríamos acreditar. No topo do mundo!!!! Inacreditável!!

Aquelas imagens de Espanha e Itália que vimos em abril passado nos ecrãs das televisões estão a chegar até aos nossos corredores. Os hospitais reinventam-se. Abrem-se novos serviços em menos de 48 horas, com enfermeiros, médicos e auxiliares a somarem horas e mais horas de trabalho. Fecham-se salas de bloco operatório porque os recursos humanos são necessários para outros locais e as camas destinadas a utentes com cirurgia programada deixam de existir.

As ambulâncias fazem fila na entrada das urgências deste país confinado de alguns portugueses que não respeitam o poder da palavra VIDA.

Saí do trabalho e conduzo até casa. Nota-se um menor número de carros na rua, mas o número de pessoas a passearem na marginal junto à praia é assustador. Crianças a andarem de skate sem máscaras; casais a fazerem exercício físico sem máscara; famílias a passearem de bicicleta como se se tratasse de um domingo curado da doença; as padarias vendem cafés que as pessoas trazem para fora do estabelecimento e tomam todas juntas num convívio desleal.

Avisto três pessoas desconhecidas (provavelmente amigas) a passearem em conversas divertidas. Paro o carro e faço sinal para virem ao meu encontro como se fosse pedir informações sobre onde fica a rua tal… Dirijo-me a elas: “Por favor, coloquem máscaras. A doença piora a cada hora que passa.”

Resposta – “Esquecemo-nos!!!”

“Desculpem a minha sinceridade, mas se alguma de vós ficar doente ou um familiar precisar de uma cama no hospital porque precisa de ser operado de urgência pode não ter onde se deitar.” Fechei o vidro e arranquei com  o pé raivoso no acelerador…

As pessoas não querem saber. Desconhecem o que é o Dever Cívico. Os portugueses ainda não perceberam que poderemos não ter camas no SNS para um filho com uma simples apendicite.

Deviam visitar as 638 pessoas internadas nas UCI e olharem para corpos a serem sujeitos a cateteres que invadem as veias e as artérias sem pedir permissão;  profissionais a andarem de um lado para o outro com os passos cansados imbuídos de raiva e, muitas vezes de impotência e frustração; vozes que não se calam a pedir isto e aquilo; doentes com faces de dor quando são virados de lado ou de alegria quando percebem que o pior já passou; a dificuldade que muitos têm em segurar numa colher para poderem comer uma gelatina pois o tempo sem mexer um braço foi demasiado. Deviam ver e perceber que os corpos que saem embrulhados nos sacos de cadáver podem ser o irmão, o pai ou a mãe.

A frustração de quem quer salvar e não consegue… A raiva de quem não foi visitar os pais no Natal… A impotência de colocar pessoas em macas no corredor de um serviço gelado por não haver camas disponíveis…

Enfim, os portugueses precisam de perceber que a vida e a morte andam de mãos dadas. Agora mais do que nunca.

E a infeção não acontece só aos outros.

Nota sobre a autora: 

Chamo-me Joana. Tenho 40 anos e sou muitas coisas… filha, irmã, enfermeira, formadora…mas a mais difícil de todas… sou mãe, boadrasta e mulher.

 

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1 comentário em “Diário de uma Enfermeira quarentona em tempos de pandemia: Parte XV

  1. Muito bem Joana!
    Ainda melhor quando tomaste a iniciativa de interpelar aquelas trauseuntes e pedires para elas colocarem as máscaras.

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