Diário de uma Enfermeira quarentona em tempos de pandemia: Parte XI

Com as vozes irritantes dos deputados da nossa Assembleia da República a debaterem a nova votação do estado de Emergência, escrevo, mais uma vez sobre esta doença que nos alastra o discurso e que invade a vida dos profissionais de saúde de morte.

Hoje não sou eu que escrevo. Apenas digito a “voz” da Carolina, com a sua prévia autorização, pretendendo chegar com estas linhas ao coração de todas as Carolinas deste meu país, recém enfermeiras que foram “atiradas” para trabalharem nos Cuidados Intensivos nesta pandemia que teima em não nos largar.

Vinte anos de idade me separam da Carolina. Vinte anos de profissão também.

Quis a Pandemia que nos juntássemos no cuidado ao próximo. Quis a Pandemia que eu a ensinasse a programar máquinas; a calar alarmes; a montar equipamentos que ela não conhecia; a explicar-lhe as interações medicamentosas de fármacos, enfim…. a dar-lhe asas para ela voar sozinha neste mundo fantástico que é salvar vidas!

Quis a Pandemia que eu visse na Carolina a Joana de há vinte anos… Com a garra de miúda que quer absorver tudo aquilo que lhe explicam e questiona e questiona e com medo de falhar, mas impulsiva nas frases e terna no olhar…

Deixo nestas páginas brancas o testemunho desta miúda enfermeira que, tal como eu, precisa da escrita para libertar o que lhe vai na alma e aliviar o aperto do coração.

“04 de Novembro de 2020, o ponteiro do relógio marca as 7:47h. Ao fundo do corredor, pico o ponto, subo as escadas, mas que grande lanço até chegar ao 3º piso, viro à esquerda, entro no meu serviço, fardo-me, pego nas minhas socas e penso, bem, mais um turno, por entre os loucos que tenho vivido, mas este vai ser longo, 12h pela frente me esperam e o quanto estas socas ainda vão ter que chinelar.

Dirijo-me à colega que vou render, passamos o turno, recebo a doente que será da minha responsabilidade nas próximas 12h, alguém já minha conhecida, alguém que já vinha a acompanhar a alguns dias ao longo dos turnos realizados ali, na UCI Covid.  

Preparamos a terapêutica, organizamos as dinâmicas do serviço em equipa, e de seguida…Máscara FP2, óculos, viseira, fato completo, bata de proteção, 2 pares de luvas… tudo aquilo a que temos direito. Lá vamos nós, lá vou eu. Ultrapasso a linha vermelha. Dirijo-me à minha D. Esperança (nome fictício), administro a terapêutica, faço as dinâmicas que um doente de UCI exige, presto-lhe os cuidados de higiene, cuido do seu cabelo, espelho nos meus cuidados todo o conforto e dignidade que ela merece. Mas é notório que o estado geral dela piorou ao longo dos dias, percebemos por evidência científica, através dos monitores, que a qualquer momento a sua alma se esvanece.  

Contatamos a família para que se despeça, sabemos que será uma questão de horas…

Recebo os filhos, apresento-me como a enfermeira de referência da D. Esperança, explico-lhes o que se passa, equipo-os de uma forma rigorosa, protetores de calçado, bata de proteção, luvas, óculos… preparo-os para o que irão ver, os mil e quinhentos fios, as máquinas, o ventilador… avançamos juntos, ultrapassamos a linha, dirigimo-nos a ela. As lágrimas deles escorrem pelo rosto, e confesso que as minhas por mais que disfarçadas por detrás de um fato, também. Encorajo-os, digo-lhes para que agarrem na sua mão e lhe digam o quanto gostam dela. Silêncio. Afasto-me um pouco e respeito a privacidade deles. Transmito-lhes confiança, “ela está tranquila, relaxada, não tem dor, está confortável na medida do possível”. 

Saímos da zona vermelha, retiramos todas as proteções. Acompanho-os à porta. Tranquilizo-os, garanto-lhes que a sua mãe está bem entregue, não me refiro a mim, mas sim a toda a equipa que me acompanha diariamente nesta luta, que ficará em paz, e nunca a deixarei sozinha
Fecho a porta do serviço, o coração fica bem mais apertadinho. Mas, mais a fazeres existem, entre os alarmes a apitar, e máquinas a tocar, a confusão… Passados momentos, volto a dirigir-me junto dela, e todos percebemos que o momento teria chegado. Agarrei a sua mão, e fiquei junto dela. Cumpri o que prometi. A D. Esperança faleceu. Foi o meu primeiro óbito.
Não foi só mais um turno, contrariamente ao que se possa pensar, não foi só mais um dia.. foi o dia em que vivenciei a linha de alguém a permanecer reta, como nos filmes, mas a diferença é que foi real, eu estava ali, junto dela. Não estava sozinha, uma das companheiras de guerra permaneceu comigo, encorajou-me, tranquilizou-me, fez-me sentir que fizemos tudo o que poderíamos fazer pela nossa doente, que foi e que fomos os enfermeiros que ela precisou, sempre, 24h, sem vacilar.
Das 59 mortes do dia de hoje, uma foi a D. Esperança.
É assustador pensarmos quantas mais D. Esperanças irão existir… quanto tempo isto irá durar… até quando iremos aguentar?”

E enquanto a linha isoelétrica aparecia no monitor e eu lhe dizia “ temos que arranjar a senhora…” a Carolina deu-lhe a mão e só a largou quando desliguei o monitor. E expliquei-lhe os seus primeiros cuidados post mortem com a serenidade e a seriedade que o momento impõe…

A todas as Carolinas peço-vos coragem e brilho nos olhos de quem chegou agora a este mundo da Enfermagem e da Medicina em que a linha que separa a vida da morte é bastante ténue.

Nota sobre a autora: 

Chamo-me Joana. Tenho 40 anos e sou muitas coisas… filha, irmã, enfermeira, formadora…mas a mais difícil de todas… sou Mãe, Boadrasta e Mulher. Escrevo para libertar o que me vai cá dentro…

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5 comentários em “Diário de uma Enfermeira quarentona em tempos de pandemia: Parte XI

  1. Mais uma vez minha querida, Deus te recompensará! Esse teu amor, afeto e serenidade permanecerá eterno nos corações de quem precisa dessas mãos incansáveis! A D Esperança estará sempre contigo na linha da frente, não tenhas dúvidas!! Beijo enorme e obrigada por todo o teu carinho!!

  2. Adoro ler-te minha Joaninha ❤
    Um bem haja a ti e a todos os teus como tu que estão na linha da frente ?
    Força e coragem para todos ??
    Que Deus vos abençoe ?

  3. Muita força e coragem. E que na vida existam muitas e muitos como vocês, que façam com brio e dedicação o trabalho para o qual se formaram, mas sem nunca se esquecerem que devem ter um GRANDE CORAÇÃO, só assim farão a diferença.

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