Diário de uma Enfermeira quarentona em tempos de pandemia: Parte VII

Nota-se uma pandemia morna.
O número de novos casos são menores, mesmo com o número de testes a aumentarem, o que é bom! Os doentes internados em cuidados intensivos abrandam e as mortes diminuem. Vai de encontro ao que os espanhóis comentam sobre nós: estamos a portar-nos muito bem!!

No meu serviço estão apenas três pessoas internadas e já não temos novas entradas há dois dias, significando que os infetados graves estão a diminuir, as pessoas fazem testes logo que o primeiro sintoma aparece, e consegue-se prevenir, precocemente, a falha do sistema respiratório.

Tudo isto leva-nos a amornar a contingência e o medo. Vamos baixando a guarda e a vontade de que a normalidade volte começa a sufocar as ideias e leva-nos a tomar atitudes que até há duas semanas atrás eram impensáveis.

Foi o que fiz hoje.
Coloquei o medo de lado e a razão unida com o coração decidiram que o afastamento das minhas filhas já tinha passado o razoável. Nunca tinha estado tão longe dos seus cheiros, dos seus olhares doces, dos seus abraços confortantes e dos seus risos enormes e prolongados. Ao ler uma notícia acerca de como os profissionais de saúde estão a viver longe dos seus, tomei a decisão. Conversei com o pai das minhas filhas e elas regressaram.

Podem dizer que, pelo fato de, diariamente, enfrentar este vírus medroso, a probabilidade de me infetar e infetar os meus é enorme, eu respondo-vos: mais depressa me infeto a ir ao supermercado do que a trabalhar doze horas na minha “bolha Covid”.

Foi uma decisão dura.
É muito duro sair de casa para trabalhar doze horas dentro de fatos quentes, com viseiras húmidas pelo ar, com fardas que se colam ao corpo, a mudar constantemente de luvas e dores de cabeça que, por mais paracetamol que se tome, não passam, pelo peso que o medo nos provoca e, chegar a casa, e só contemplar as suas fotografias na parede em dias de verão e interpretar os seus sinais na vídeo-chamada onde não se sentem os seus cheiros, onde mal se vêm os seus olhares doces, onde os abraços são imaginários e os seus risos abafados pela saudade.

Desculpem-me os intransigentes e os céticos sobre esta decisão. Desculpem-me os meus colegas que continuam longe dos seus, que tanto respeito! Vinte e oito dias foi muito tempo. Foi para lá do tempo. Um tempo interminável, insuportável, impossível de se viver nesta pandemia de vida.

O telefone tocou e disseram que tinham chegado. Desci com o coração a saltar da boca e com a barriga cheia de borboletas. Quando as vi, ali a dois metros, a minha “bolha Covid” rebentou e os abraços demoraram-se, apertados e, a voz da mais velha, de miúda adolescente, que cresceu imenso (está quase da minha altura… e eu meço 1,70m!!!), sussurrou no meu ouvido: “que saudades eu tinha tuas, mãe”.

E foi um regresso. Não sei por quanto tempo. Num tempo turbulento. Num tempo, agora, ainda mais atarefado entre tele-escola e vídeo-chamadas e jogos e brincadeiras e conversas ao pôr-do-sol.

Sinto-me livre! Em dias que se comemoram a liberdade que a pandemia nos tirou.

E, pelo menos, depois de doze horas naquele hospital de quatro paredes, que tem sempre o mesmo cheiro, quando entro aqui (depois do ritual de vinte minutos de desinfestação corporal), este diário passa a ser de uma enfermeira quarentona em tempos de normalidade.

E deixo a “bolha”, lá fora, à espera mais doze horas.

Nota sobre a autora

Chamo-me Joana. Tenho 40 anos e sou muitas coisas… filha, irmã, enfermeira, formadora…mas a mais difícil de todas… sou Mãe, Boadrasta e Mulher. Escrevo para libertar o que me vai cá dentro…

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4 comentários em “Diário de uma Enfermeira quarentona em tempos de pandemia: Parte VII

  1. Força Joana, que TUDO CONTINUE BEM e DEUS VOS PROTEJA.
    Se precisarem de alguma coisa digam, cá estaremos para ajudar.
    Aproveitem bem este “pequenino” GRANDE momento. Sejam Felizes.
    Beijinhos,
    Pedro, Isabel, Maria Miguel e Margarida

  2. A Joana é o exemplo de muitas por este mundo que nos surpreendeu com uma doença terrível inamaginavel. Portugal e os portugueses podem orgulhar – se pela maneira como reagiram ao confenimento. Teremos que continuar até que o Governo e nós cheguemos à conclusão que voltamos à Liberdade plena.

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