Desigual

 

Foi quando ela percebeu tudo.

Era o corpo que falava e abdicava das cordas vocais e do som e da métrica das palavras e das vírgulas e da pontuação e de tudo. Era o corpo que mandava e que lhe exigia tremendo que apaziguasse, com o corpo do outro, a génese do desconforto.

Era preciso regressar à natureza, reduzir-se ao estado primário dos primários instintos. Ela não teria qualquer hipótese nesta luta desigual contra o corpo. Estava dentro dele, sentia-lhe o desejo toldar-lhe a visão. Um corpo em rebelião contra o seu dono, um corpo insolente, questionando tudo, retirando-lhe o poder do pensamento racional, a capacidade de se exprimir, com as mãos, o artifício de disfarçar. Tentava que através dos olhos o outro não se apercebesse da batalha que travava dentro dela — o sangue a correr-lhe quente e depressa demais nas veias, o ar a faltar-lhe num diafragma pequeno demais para tanta insurreição.

Foi quando ela percebeu tudo. O corpo já não lhe pertencia, pertencia ao outro. Estava na hora de lho oferecer e deixar-se cair prostrada na terra.

Foi quando abriu os olhos.

 

in “Deve Ser Isto O Amor”

Rita Ferro Rodrigues

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