Confusão e sensibilidade com sabor a Marraquexe

 

Cheira a carne, a peixe, a pó. Cheira a uma pobreza e uma riqueza que não se distinguem de tão misturadas que estão na cor desmaiada de pequenas casas quentes. Nos padrões garridos dos tapetes, dos colares, das contas e de todas as histórias penduradas num labirinto mágico de paredes com vida. 

Perturba e confunde o som dos tambores, das cornetas, das correrias, das mulheres, das motas, do próprio ar que assume a sua voz ruidosa… Perturba e confundo o jeito falador de homens que nos rodeiam, a forma de ser e de estar, toda a envolvência que assume esta personalidade local que por nós entra. Vai-se entranhando na pele, mudando o nosso cheiro e a nossa visão ocidental de coisas simples. 

Caril e fumo dissipam-se sobre a luz espelhada de uma praça que muda em minutos. Do alto, na companhia de um chá de menta, vemos pessoas que parecem formigas andantes. Carregam tábuas, ferros, bancas e comida, por entre ultrapassagens perigosas, de burros, carros de mão, bicicletas e motoretas. Num segundo fazem nascer um mercado que ainda agora ali não estava.

As saias e os gritos das mulheres não se definem, umas e outras não têm limites, são um só misto de línguas  e corpos entrelaçados a falar rapidamente como se aquele mundo acabasse amanhã

Cheira a homem em quase todas as ruas labirínticas de uma medida que mal se sabe onde termina depois mesmo de a começar a descobrir. Cheira a sorrisos, a negócios, a um lugar cheio de uma vida. Uma vida tão diferente da vida do lugar de onde vimos.  

Trocam-se os passos com os olhos que em simultâneo se deixam levar atrás do som da corneta, do gemido da oração e da balbúrdia de gente que nunca para. Ficamos confusos e aflorados de tantas sensações num tempo que não se conta…

Sensibilidades distintas de pensamentos afogados que buscam o encontro  com  a calma de lugares que conhecemos num lugar onde ainda somos novos. Entre o sentir e o ver comparamos culturas e ritmos com rotinas de uma civilização onde dizemos pertencer.

Na emoção e na razão procuro encontrar o melhor dos dois lados no lado onde me conheço melhor. O ocidente livre e fácil onde se assusta esta Africa energética e ainda muito parada em comboios bonitos que pouco querem andar.

Misturo em mim a sensibilidade única de ter sentido o medo, o pânico confuso de passar dez vezes em ruas “iguais” sem saber como voltar a chegar ao ponto de onde parti. Misturo em mim a sensibilidade e a confusão emergente de vontades e cores que tão depressa nos fazem voar para sabores intensos de lugares encantados daqui e dali também.

Hoje, dias de pois, com este sol de cá, com esta maresia que entra nos meus pulmões a dentro, recordo, com vontade de encerrar numa caixa colorida de metal trabalhado por um marroquino desdentado, pequenino e pouco limpo, o cheiro da mirra, na banca do lado mais à esquerda da praça Djemaa El-Fna, mesmo na entrada principal da Medina. Ou seja, na primeira de 14 portas onde me perdi de medos e sensações. Recordo o cheiro a Mirra, mesmo ali, logo ao lado de uma das muitas bancas de sumo de laranja.

A minha sensibilidade hoje é como mirra, quente e penetrante, faz-me salivar  diante de uma janela espelhada que me mostra que há sempre um lado de lá, um estar e ser mais além, um pensar mais a frente. Um pegar na mochila e com medos ou sem eles ir.

Mirra purificante, numa praça de folia, alegria, gula e extravagância onde outrora se erguiam cabeças decapitadas de criminosos e maus exemplos e agora se fazem festins de comes e bebes  e se encantam serpentes para turista ver. Mirra purificante o cheiro que guardo duma viagem diferente.

Confusão e sensibilidade com sabor a Marraquexe.

 

Nota sobre a autora

Carolina Albuquerque, 34 anos. Mulher e Mãe em construção, depois de 12 anos de trabalho na área da gestão educativa e formação profissional.

Casei no dia do meu aniversário com o meu companheiro de viagem. 9 anos depois, uma volta ao mundo e mais meio mundo em aventuras de mochila às costas, nasceu o Xavier, um bebé simpático e feliz. Eu beirã, casei com um saloio e tenho um filho alfacinha, vivemos num pequeno T2 em Lisboa, com o Caril, um giro cão de loiça amarelo; diz que por agora é o único animal compatível com os metros quadrados da nossa vida. Eu gosto de livros, de fotografia, de escrever  sobre lugares, pessoas e culturas e neste momento sobre os desafios da maternidade, nem sempre fáceis para mulheres cheias de vida e de projectos.

Gostamos de escolhas saudáveis na nossa cozinha e de visitar lugares de comida indulgente e confortável. Gostamos de lugares bonitos, adoramos Lisboa.

Mãe em permanência, cheia de planos e sonhos, cheia de fé na vida e nas pessoas, acredito que o melhor em tudo está por chegar. Com gosto pela escrita, pelas emoções dos dias simples, pelas viagens sem destino e pelas coisas boas da vida. Com a vida profissional em standby depois de ter sido recusada em alguns trabalhos por ter um filho pequeno, desfruto da maternidade (nem sempre fácil) e das pequenas coisas que o dinheiro não compra mas pelas quais sou muito grata.

 

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