Carta para a namorada do meu pai *

Entraste na minha vida quando eu tinha 5 anos, depois da separação dos meus pais. Eu não percebia o que sentia mas sabia que tinha dores. As dores eram de tristeza – porque os meus pais se tinham separado. Não entendia o que tinha acontecido e sentia que a culpa era minha. Sabes que eu achava que eles se tinham separado por causa das minhas birras? E que, se me tivesse portado melhor, talvez ainda vivêssemos todos na mesma casa?

Depois,

tu chegaste à minha vida.

Desejei muito não gostar de ti e esforcei-me bastante, mas tu fizeste tudo bem:

– Chegaste devagarinho, sem te impores.

– Não fizeste um esforço falso para me conquistar, respeitaste os meus tempos para te aproximares de mim.

– Começámos por conversar sobre o mundo e sobre animais porque percebeste que tínhamos essa paixão em comum e tu, de forma natural, fizeste crescer esse tema de comunicação entre nós.

– Foste andar comigo de bicicleta e estimulaste o meu talento para jogar volley. Desde o primeiro momento percebi que brincavas comigo com prazer e não para conquistar/agradar o meu pai. As crianças sabem essas coisas.

– Durante muito meses despedias-te depois do jantar e “deixavas o pai só para mim” (na verdade não sei se, de facto, ias para casa mas essa atitude de sensibilidade  marcou-me. Era uma altura em que estava a tentar perceber as coisas).

– Só passado muito tempo te vi dar um beijo na boca do meu pai. (Enquanto percebeste que não estava preparada, fizeste questão de te comportar sempre como uma amiga lá de casa, sem grandes manifestações de afecto típicas de um casal).

– Elogiavas sempre a minha mãe quando eu falava dela. Lembro-me de me dizeres que a achavas muito bonita e inteligente e da felicidade que senti ao ouvir essas palavras ditas por ti.

– Nunca deixaste o meu pai dizer mal da minha mãe à minha frente (quando eles discutiam ao telefone, eras tu que me pegavas pela mão e me levavas para longe do conflito).

– Quando começámos a falar mais e a ser amigas disseste-me assim: “ Marta, sou tua amiga não sou a tua mãe. Tens uma mãe excelente e, agora, tens em mim uma amiga para a vida”. Isto foi determinante, não querias o lugar de ninguém.

– Nunca te impuseste na minha educação mesmo quando fui injusta e mal educada contigo (aconteceu 3 vezes). Tiveste uma calma olímpica. Deixaste-me acalmar dizendo-me apenas que as minhas palavras te magoavam. Disseste também que sabias que eu ia perceber isso, porque tinha bom coração. Tinhas razão: caí sempre em mim para te pedir desculpa. Recebeste sempre o meu abraço sem sermões nem ressentimentos. (E nunca contaste ao pai que me tinha portado mal!)

– Foste sempre mediadora dos meus conflitos com o pai sem grandes interferências: usavas o sentido de humor para aliviar as nossas discussões e depois, subtilmente, davas alternativas para a solução do conflito.

– Quando acabei o Liceu com média de 17, tu não sabes mas eu vi-te no atrium da escola à procura do meu nome na pauta e quando encontraste as minhas notas, eu vi-te comovida de alegria. Estava escondida atrás de uma porta à espera do pai para o surpreender mas foste tu que me surpreendeste: entraste primeiro porque o pai ficou a estacionar o carro. E naquele momento confirmei mais uma vez o teu orgulho e amor por mim.

Não sei como foi possível fazeres tudo tão bem porque agora que sou quase adulta e sei que é mesmo muito difícil. Mas tu fizeste tudo certo e até parecer fácil. Esforçaste-te, respeitaste-me, colocaste-te sempre no meu lugar.

Quis escrever isto para te dizer obrigada e para te dizer que te adoro. Que, por tudo isto, a nossa amizade vai muito para além da tua relação com o meu pai: fiques ou não com ele para sempre, agora digo-te eu: estarei sempre na tua vida e quando fores velhinha vou tomar conta de ti.

Talvez este teu exemplo possa inspirar e guiar outros e outras namorados e namoradas de pessoas com filhos. Vejo muitos conflitos à minha voltas. Se tu conseguiste, todas as pessoas conseguem. Assim queiram. Assim se esforcem.

Fizeste tudo certo e eu tenho o resto da vida para te retribuir a segurança e paz que me deste sempre e que foi tão importante para o meu crescimento.

 

(* texto com base em testemunho real)
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