Alice

 

A sensação por detrás dos olhos abertos, sempre que te recolhes para dentro, de ser por vezes uma sombra que sussurra aquilo que já ninguém ouve; a sensação de ter uma mão firme no ar que, ao sentir-se invisível, vai-se deixando cair e inevitavelmente vira pó; a sensação ao olhar outras pessoas nos seus diversos caminhos, de que todos andam por uma espécie de passerelle individual invisível, de onde dificilmente são capazes de sair para olhar o outro e ver alguma coisa com profundidade. De repente, olhos em espelho de água e a sensação de peso algures no peito e de nó asfixiantemente apertado na garganta. Sentes que consegues prontamente disfarçar, ou não fosse a tua prática de anos a embrulhar a fragilidade no facto de seres uma natural cuidadora e apaziguadora das pessoas que erguerem as mãos, num pedido de ajuda qualquer. 

Outras vezes, em dias mais conturbados, não consegues disfarçar como se sorrir virasse ofensa para aquilo que sentes e tornas-te numa espécie de búzio: tão aninhada sobre ti mesma como se fosses o teu próprio colo, com pouca gente a ver-te enterrar na areia e algumas pessoas com vontade de encostar o ouvido e ouvir, por voyeurismo, as ondas agitadas que há em ti. Sorris com ar de quem está a desabar para dizer a quem queres dizer, que deixas que mergulhe alertando para o perigo de ir ao fundo, já que sentes que és mais âncora que vela. Há momentos em que sentes claramente que te estás a afogar em ti, sem vislumbrar terra e sem bóias onde te agarrares. 

Sempre te sentiste a Alice: a ver as coisas com detalhe, a lutar contra as regras que a sociedade estupidamente impõe, a acreditar nos sonhos e a deixar-se sonhar acordada no seu mundo muito próprio, no outro lado do espelho onde não te forçam a fazer coisas que não queres ou te tiram a escolha e a liberdade para existir à tua maneira.

Não gostas de exibicionismo ou de dar demasiado nas vistas. Gostas da partilha silenciosa num olhar de algo que não chega a ser dito, gostas de sorrisos orientados a quem queres, no meio de uma conversa com vários intervenientes em que ninguém se apercebe desse sorriso. Gostas do olhar que diz “Estou aqui, se precisares” sem ser preciso ser verbalizada uma palavra sequer. Gostas de tudo o que é elegante mas não narcísico, provocatório mas respeituoso, silencioso mas empático e leal. Comoves-te com as coisas bonitas que as pessoas fazem umas pelas outras, sem esperar nada em retorno: um dia comoveste-te com um senhor na rua, que estava sem-abrigo, que te viu a comer Malteseres e disse que adorava e tu ofereceste-lhe todos e ele podendo tirar todos, escolheu tirar apenas dois para que tu não ficasses sem nenhum. 

Que sejamos todos como ele, ou tentemos o mais possível ser.

Nota sobre a autora

Ana Rita Rendas

24 anos

Mestre em Psicologia Clínica 

Motivação para a escrita: Escrevo para me reouvir, reajustar, reaprender e ressentir. 

 

 

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