A Vida Toda é Pouca

A vida toda não nos chega, não nos basta. Acreditamos ingenuamente que a dominamos, que detemos a trela que a controla, e os imprevistos, os contratempos que inevitavelmente acompanham qualquer existência, por mais moderada e bem-fadada que ela tenha a sorte de ser, são essas guinadas súbitas e inesperadas, consentidas pela irremediável distância que vai da mão à trela, e que fazem tremer os dedos que a julgam firmemente segura. No entanto, independentemente das trepidações que trespassem da trela à mão, a segunda acaba sempre por conseguir refrear a primeira, não se revelando esses fortuitos acontecimentos significativos o bastante para nos fazer despertar da pueril crença de que a vida é nossa e duradoura, cujo fim se vislumbra longínquo.

Sim, o homem está também verdadeiramente convicto de que ainda tem tempo, muito tempo. Ainda tem tempo para amar, para fazer, para ser. Vivemos a adiar o agora, porque nos é, de modo geral, inconcebível a ideia de que o amanhã pode não se concretizar. Não digo “amo-te” agora, digo-o amanhã. Não telefono à minha amiga hoje, ligo-lhe depois. Não almoço hoje com os meus avós, fica para mais tarde. Ainda há tempo.

Mas o longínquo antecipou-se, e o “ainda” foi sorrateiramente substituído pelo “já” e, de repente, os anos atropelaram-se uns aos outros sofregamente e a vida tornou-se memória. O amor definhou, a amizade perdeu força e dos avós já só temos saudade. Sem se dar conta, o futuro certo transforma-se na incerteza da sua possibilidade, e já só persiste a precária memória em que a vida se transfigurou.

A trela está esgaçada. Já se esgaçou, rasgou-se. E, no final de contas, fomos apenas rafeiros que a vida precocemente deixou ir. A trela não se remenda, não estica mais. A vida toda é pouca.

Nota sobre a autora

Há 29 anos nasci em Lisboa sob o nome de Marta Paixão. Até agora tenho tentado viver de forma a não deixar ficar mal aqueles que tiveram a árdua tarefa de me atribuir um nome. E, mais tarde, de garantir a minha sobrevivência, educação e felicidade. A eles tudo devo e, portanto, sentirei esta eterna responsabilidade de não os desapontar, porque, como refere Almada Negreiros, “Das duas uma: ou as pessoas se fazem ao nome que lhes puseram no batismo, ou ele tem do seu o bastante para marcar a cada um.”

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