A tempestade

A tempestade lá fora quebrava-a no silêncio do interior. De olhos esbugalhados e fixos na escuridão do teto, contava as horas para que o sono chegasse.

A tempestade de lá de fora deu espaço à tempestade interior que se desenhava já há alguns dias. O primeiro indício surgiu quando rebuscava no fundo da mala as últimas moedas para pagar a conta da mercearia. Relembra-se que enquanto remexia o fundo da mala sentia-se a remexer no fundo da sua dignidade. Ainda não passava do meio do mês e já andava a contar tostões. Ouviu o suspirar impaciente da menina da caixa e as lágrimas ameaçaram vir ao de cima. Quanto encontrou a moeda que faltava engoliu-as e prometeu que lhes daria espaço noutra altura. No caminho para casa não tinha tempo para devaneios. Precisava de encontrar receitas que fizessem fundir cada um dos ingredientes que levava na sacola. Cada um deles teria de ser multiplicado e desmultiplicado….

Voltou a ir ao fundo da mala procurar as chaves e talvez a alegria de chegar a casa com compras. Só encontrou a chave! Quando colocou a chave na fechadura inspirou fundo, a casa já não era sinónimo de paz…agora, era o espaço para o desafio diário.

Hoje, de olhos postos na escuridão, com a tempestade em barulho de fundo, deu espaço às lagrimas. Corriam salgadas pela cara livres e sem vergonha. Chorava com a convicção que depois do choro poderia vir alguma clarividência, chorava para que o tempo passasse. Não havia raiva nas lágrimas, essa já passara. Não havia tristeza nas lágrimas, essa também já passara. Não havia dor, essa já não sentia.

Eram lágrimas de resignação.

Já remara demasiado contra a maré, agora estava, apenas, na disposição de sobreviver às tempestades. Já não fazia esquemas, nem roteiros de fuga. Deixaria que fosse a tempestade a determinar o seu rumo. Em apneia deixaria que o seu corpo fosse conduzido. A alma, essa, talvez um dia pudesse tratar dela. Neste momento para sobreviver pareceu-lhe que o melhor era deixar o corpo boiar pela vida. Se sobrevivesse talvez voltasse a arregaçar as mangas…talvez.

O dia começou a raiar.

As lágrimas secaram no rosto. Levantou-se de mansinho. Nem lavou a cara. Foi até à cozinha, onde já batia um leve raio de luz, abriu o frigorifico, tirou a garrafa de água sentou-se na mesa do pequeno almoço e bebericou.

A mesa do pequeno almoço vazia, os olhos vazios e o ruído de fundo de quem acordou com vontade de viver. Vinha lá mais um dia, era só preciso sobreviver.

Nota sobre a autora

O meu nome é Inês Pina.

Sou uma marrona que não gosta de estudar, uma preguiçosa trabalhadora e uma fala-barato solitária.

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