A Mulher Quieta

Destoava da paisagem porque estava toda vestida. Calças, botas, casaco e camisola de capuz a esconder o cabelo.

Na praia, no pico do calor de Verão, o som ambiente das ondas, gargalhadas de crianças e um rádio, ao longe, a tocar a canção do momento. O senhor que grita, anunciando as bolas de Berlim, o nadador-salvador que apita para um miúdo mais aventureiro, que se atreveu a passar a rebentação, traiçoeira nesse dia.

E na praia, no meio do areal, sem ninguém a ver, mas ali, uma mulher vestida da cabeça aos pés, calças de ganga largas, muito magra, cabelo escondido no capuz da sweatshirt, de ténis e meias, olhar hipnotizado no mar, muito quieta e em silêncio.

Passa por ela um grupo de adolescentes, rapazes e raparigas felizes e bronzeados, a falar alto e a rir. Uma das miúdas dá uma corrida até à água e mergulha em voo picado, de cabeça, atlética. Durante a corrida, passa muito próximo da mulher quieta, calcanhar cheio de areia que lhe chicoteia o rosto, mas nem assim ela se mexe. E ninguém repara. Os miúdos acabam por entrar todos no mar e na felicidade do dia de Verão; dão umas braçadas, regressam à costa e continuam a caminhada barulhenta e feliz.

Duas horas passam, a praia fica mais vazia, as famílias a caminho de casa, para a pausa da hora de maior calor, a salada de atum, a limonada fresca e a sesta depois do almoço.

A mulher quieta tem, agora, as mãos a tapar-lhe o rosto. Mexeu-se. Não sabemos se chora, se ri, porque se esconde. Parece ter frio debaixo de tanta roupa. Parece tremer.

Retira do bolso do casaco, em gestos robóticos e lentos, uma fotografia. Deita-se para trás indiferente aos golpes de sol que, sem misericórdia, calcinam, àquela hora, qualquer matéria viva. A fotografia é de uma criança e ela abraça-a junto ao peito. Deitada de olhos abertos como se o calor e a luz impiedosa não a ferissem.

Levanta-se devagar, mas sem qualquer hesitação.

Na praia, o grupo de adolescentes dorme na sombra de dois chapéus e, o nadador-salvador também fechou os olhos, exausto, aproveitando a calmaria da hora de almoço. À beira-mar, uma criança de 7 anos cava um buraco na areia. Usa chapéu, t-shirt e tem a cara branca de creme. O pai dorme à sombra.

A mulher quieta avança mar adentro, com a precisão de uma vela hasteada. A fotografia na mão do braço caído ao lado do corpo que caminha agora contra as ondas. Os ténis cheios de água a pesar, depois as calças até à cintura cheias de mar, em dois passos ficara sem pé.

Um passo.

– Senhora ajude-me…                                  

(a voz sumida e entrecortada por tosse aparece-lhe ao longe e, até parece vir de um búzio, a mulher quieta faz por não a ouvir.)

– Senhora, por favor. (choro) O meu pai está a dormir e eu não consigo voltar para a toalha. Não quero morrer.

Ao lado da senhora agora na ondulação quieta, a criança da t-shirt, com o creme espalhado na testa, a debater -se para viver, aflita na rebentação.

A senhora quieta, pela primeira vez, estremece e não é de frio.

Tenta pegar na criança do creme espalhado na testa, mas para isso tem de largar a fotografia.

Largou-a.

No areal abraçam-se sãos e salvos. A criança chora, ri e agradece, digerindo o susto.

A mulher quieta tem agora as mãos no rosto da criança e sussurra-lhe ao ouvido: “Foste tu que me salvaste, meu amor”.

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1 comentário em “A Mulher Quieta

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