A minha avó

 

A minha avó tem 99 anos. Chama-se Marieta. Nasceu em Montemor-o-Novo, cresceu feliz na casa das escadinhas do Quebra-Costas, colada ao castelo.

Filha de um republicano sério e corajoso, herdou-lhe essas duas características. Veio para Lisboa estudar, numa altura em que as meninas não estudavam e muito menos viviam fora de casa dos pais. Casou por amor e não convidou ninguém. Amou louca, intensa e cegamente, até ao fim. Foi muito amada. Ainda ama, apesar de o seu amor já ter partido e de ela ter decidido, como defesa para a tristeza, afundar-se nela própria e nas memórias dos tempos mais ternos.

A minha avó tem sentido de humor e é supersticiosa.

Quando eu tinha soluços pregava-me sustos de morte (um dia disse-me, tinha eu uns 7 anos e alguma vaidade pelo meu cabelo, que me tinha nascido uma enorme pelada no couro cabeludo. Os soluços, naturalmente, desapareceram).

A minha avó tem um sopro de realismo mágico. Agnóstica, sempre teve uma visão espiritual da vida, pressentimentos e validações do destino, coisas inexplicáveis sobre as quais ela nunca falava mas que se sentia. E se respeitava.

As sextas à noite, quando os gémeos lá ficavam em casa a dormir para os pais irem sair com os amigos, a avó comprava sempre as mais maravilhosas bolachas de chocolate: eram fininhas e estaladiças… Uma delícia.

Na altura de as servir, colocava-as sempre no prato em número ímpar só pelo gozo de ver como é que nós, pequenitos, resolvia-mos a situação. Inevitavelmente, dividíamos a última bolacha e ela ia buscar mais duas à dispensa, como recompensa.

Quando algo me desaparecia, ela amarrava o rabo ao diabo: prendia um lento no pé da cama e logo o objecto dava um ar da sua graça.

A minha avó tinha as pernas mais bonitas que alguma vez vi na vida. E sabia. Andava sempre de saia ou vestido, impecavelmente arranjada, cabelo sempre armado, cheirava a banho acabado de tomar e a perfume bom, oferecido pelo avô.

Quando eu tinha 10 anos ofereceu-me um estojo para arranjar as unhas (durante anos eu observava-a nesse ritual). Ainda hoje recordo esse estojo como um dos presentes mais extraordinários que alguma vez me deram — era em pele castanha, tinha um fecho e quando se abria reluziam os utensílios prateados, pequeninos.

Era o nosso momento. A conversar e a arranjar as unhas na varanda da casa de Paço de Arcos. A apanhar solinho nas pernas e a contar os barcos no Tejo.

A minha avó era exigente com os estudos. Quando fazíamos os trabalhos de casa ao pé dela não eram permitidas distracções. E os erros ortográficos eram corrigidos vinte vezes (as palavras que ela me corrigiu eu nunca mais esqueci).

Quando estávamos doentes is sempre visitar-nos e levava chocolates Regina (aqueles do papel amarelo).

No momento em que escrevo estas linhas ainda não a perdi completamente. Reparo que durante a narrativa hesitei nos tempos verbais, andei entre o Passado e o Presente.

Faz sentido. É assim que ela esta. Às vezes esquece-se do meu nome mas nunca se esquece de mim.

Agora, pede-nos beijos quando, por momentos, a linha do tempo em que ela vive se cruza com a nossa.

No outro dia, em arrumações, encontrei uma revista que trazia uma reportagem sobre o lançamento do meu primeiro livro.

Lá estava ela: Linda no seu colar de pérolas ao lado do seu amor, meu avô.

Sobre mim, uma única declaração: «Foi sempre assim desde que nasceu. Fez-nos sempre muito felizes.»

Lembro-me de poucas coisas tão bonitas e simples como esta… Que se possam dizer sobre alguém que se ama.

Chorei copiosamente ao descobrir estas palavras que na altura me passaram despercebidas. Ainda era o tempo em que a tinha como eterna. 

Minha querida avó. Sei que estás quase, quase a terminar a tua aventura.

Agradeço-te tudo e tudo foi tanto. 

Encontrar-te-ei sempre na varanda, quando o sol estiver ameno e o vento soprar quente.

Serás o meu barco no Tejo.

Fizeste-me muito feliz. 

 

in “Deve Ser Isto O Amor”

Rita Ferro Rodrigues

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2 comentários em “A minha avó

  1. Boa tarde Rita Ferro Rodrigues,
    ao entrar no seu blogue “Elefante de Papel” li o texto publicado no dia do seu aniversário e emocionei-me por várias razões: Por escrever no dia do seu aniversário um texto dedicado à sua avó; já não tenho nenhum dos meus avós e como são importantes na nossa infância sendo ótimos educadores; os pequenos gestos, subtilezas de familiares tão próximos que nos podem fazer muito felizes e crescer de forma saudável e finalmente porque a sua avó é minha conterrânea , pois eu também nasci em Montemor – o – Novo e conheço muito bem a rua do Quebra – Costas coladinha ao Castelo….. fiquei emocionado com essa sua referência!
    Espero que volte rapidamente à TV. Faz lá muita falta.
    Cumprimentos.
    Orlando Rodrigues.

  2. Lindo, Rita, adorei e emocionei-me.
    A Avó Marieta, minha prima Marieta, de quem eu sempre gostei muito.
    Obrigada Rita.
    Bjs com carinho

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