A contradição

O século XXI solidificou uma contradição que se tem vindo a desenhar, em especial, nos regimes democráticos. Esta é aquela batata quente que foi saltitando de geração em geração na esperança que se resolvesse por si. Todavia, aqui estamos nós, mais uma geração com a batata quente na mão sem saber bem o que fazer com ela.

Ora, atentem.

Os países foram generalizando a atribuição dos direitos políticos, económicos e sociais. Por sua vez, a economia foi excluindo boa parte da população do pleno acesso a esses mesmos direitos.

Vamos esmiuçar.

A nossa evolução tem determinado que quer a política quer a sociedade trabalhem numa base de alargamento dos direitos Humanos. Por sua vez, a economia trabalha em prol do alargamento de direitos de mercado como por exemplo a propriedade privada.

Isto resulta de um espectro cada vez maior de direitos Humanos e de uma base, cada vez mais alargada, de indivíduos a quem eles são atribuídos.

No abstrato, o conceito de Direitos Humanos não gera conflito. Ninguém se insurge que seja um direito de todos: o direito à habitação. A questão surge quando passamos ao concreto. Garantir uma casa para TODOS! Atribuímos uma a cada um? Criamos condições para todos acederem a uma? Quem faz a gestão: o governo ou o mercado?

Há vários direitos que numa economia mercantilizada desencadeiam conflitos e rivalidades. Exemplo disso: o direito à propriedade, à habitação, ao trabalho etc….No papel são aplaudidos, mas no concreto são negados a muitos.

Para aumentar ainda mais esta contradição está a natureza pura e dura das relações de mercado. Se por um lado aproxima um conjunto de pessoas (as que produzem a preços competitivos e podem pagar por eles), por outro, afasta uma grande parte (os que não podem pagar esses preços, nem podem produzir a preços competitivos).

Estas realidades desencadeiam fortes conflitos sociais. Que só não despoletam a cada virar da esquina, porque se criaram formas de acomodação desta realidade.

A forma de acomodação predominante no século XX foi designada por vários autores como uma “acomodação Keynesiana”. Basicamente, permitiu-se a todos os excluídos do mercado o acesso a direitos políticos. Todos puderam votar, independentemente da sua carteira. Ainda se salvaguardou que “todos” poderiam ter acesso a benefícios do crescimento económico com as medidas de política social (compensar os excluídos do mercado com apoios sociais). Desta forma, construiu-se a noção que não usufruindo em pleno do mercado haveria uma compensação.

Hoje, essa forma de acomodação já não é suficiente. O dilema estende-se por um prisma bem mais alargado e bem mais desafiante. As formas de acomodação já não resultam e a tensão vai-se sentido mesmo em sociedades que sempre defenderam a Convenção dos Direitos Humanos. Defender uma cartilha é diferente de a concretizar e isso hoje está aos olhos de todos e soa a hipocrisia….

Veja-se a seguinte triangulação Merkel + gasoduto russo + Navalny. Interesses económicos: 1; Direitos Humanos: 0. 

Hoje crescem as narrativas que visam desvirtuar a acomodação mais ou menos estável que o século XX desenhou. É desafiante concretizar TODOS os direitos consagrados. Há uma relação de explorados/exploradores que permite a expansão do mercado e dá a perceção a muitos milhões que esses direitos lhes dizem apenas respeito a eles, porque lutaram e desafiaram-se enquanto sociedade para os obter. Esta visão vem legitimando o discurso populista do “nós” versus “ os outros”.

Negligenciar as falhas do mercado que excluem muitos milhões e atribuir essas falhas à incapacidade individual desses excluídos é fácil e perigoso. Amanhã os excluídos podemos ser nós!

Nota sobre a autora

O meu nome é Inês Pina.

Sou uma marrona que não gosta de estudar, uma preguiçosa trabalhadora e uma fala-barato solitária.

 
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