O amor lembra-se sempre

31.03.1930. Nascia, numa realidade muito diferente da de hoje, um menino chamado Manuel. Longe de saber ou sequer de imaginar que teria pela frente uma vida muito cheia. Com tudo o que isso possa significar. Longe de saber que viria a ter 5 filhos dos quais, tenho a certeza, sempre se orgulhou. Longe de saber que viria a ter 9 netos. Longe de saber que chegaria aqui e ainda mais longe de saber que, hoje, aos 90 anos, nenhum desses filhos nem nenhum desses netos o poderia abraçar. O meu avô fez 90 anos e eu não o pude abraçar.

Tenho a sorte de ter conhecido os meus quatro avós. Tenho a sorte de ter tido os quatro durante 20 anos. Tenho a sorte de ter partilhado os melhores momentos da minha vida com eles. E os piores também. Hoje, tenho a sorte de poder celebrar o facto de ter um avô que, com 90 anos, está bem. Um avô que não se queixa. Um avô que diz sempre que não o pode fazer porque “graças a Deus, não tem dores, come bem, dorme bem”. Um avô com 90 anos que dança a tarde toda se houver música para o fazer. Talvez o tenha feito ontem. Mas nós não pudemos estar lá para ver.

Tenho medo que, por um breve instante que seja, não perceba exatamente porque é que ninguém o vai ver, porque é que ninguém o vai abraçar, porque é que não fizemos uma festa e dançar com ele a tarde inteira. Era o que os 90, e ele, mereciam.

Tenho medo que se esqueça de algumas coisas importantes. Mas também sei que, se algum dia se esquecer, uma palavra, um olhar ou um gesto serão suficientes para que não se esqueça do mais importante. O amor. Dizem que é sempre o que nos salva e eu acredito. Acredito mesmo muito.

E ainda sei outra coisa. Sei que enquanto estiver viva a minha memória, também estará a dele.

Não sei se ele ainda se lembra. Mas eu lembro-me. Lembro-me dos dias em que me levava ao minimercado perto de casa dele para comprar um pacote de batatas fritas. Sempre as mesmas.  E eu já nem precisava de pedir. Bastava olhar.

Lembro-me do porta-chaves do Mickey pendurado nas chaves da carrinha que costumava conduzir e à qual eu tinha de ir sempre, sabe-se lá porquê, dar uma buzinadela.

Não sei se ele ainda se lembra. Mas eu lembro-me.  Lembro-me das sardinhadas de sábado que o meu pai fazia e lembro-me que, enquanto esperávamos, o meu avô fazia corridas comigo no jardim. E sei que ele ganhava sempre. Mesmo quando me deixava chegar à meta primeiro. Porque, afinal, quem tem a gargalhada de uma criança ganha sempre, não é?

Não sei se ele ainda se lembra. Mas eu lembro-me. Lembro-me dos grandes passeios que ia dar com os nossos três patudos. E lembro-me que voltavam sempre como se, no caminho, tivessem encontrado o melhor do mundo. Hoje já só temos um. E estou certa de que, quando vê o avô, continua a encontrar uma das melhores coisas do mundo. Os animais sabem sempre quem lhes deu e dá amor.

Desta vez, a vida não nos deixou celebrar os 90. Mas havemos de celebrar os 90 e 3 meses, os 90 e 6 meses, os 90 e 9 meses. Havemos de celebrar quando nos deixarem. Havemos de o celebrar a ele. Havemos de celebrar o amor. Havemos de celebrar a vida.

Quando isto passar vou perguntar-lhe: “Ainda te lembras, avô?”. E se ele não se lembrar, não faz mal. Porque eu lembro-me e posso contar-lhe.

Nota sobre a autora

Marta Pires

Tenho 20 anos e sou aluna de Ciências de Comunicação da Universidade do Porto.

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2 comentários em “O amor lembra-se sempre

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