Chernobyl

O fim da série Game of Thrones deixou-nos órfãos e vazio de séries. Contudo a HBO, percebendo o nosso vício, soube vender-nos socorrer-nos. Pegou numa espécie de buraco negro da história e preencheu com classe e dignidade.

Os tempos da Guerra Fria envolveram o mundo numa de cortina de fumo, que ocultou muitas jogadas de xadrez. Isso deixou muitos pedaços de história soltos, muitos fragmentos e muitas meias verdades. Sinto que Chernobyl é um bom exemplo disso. Todos temos noção do que se passou, mas poucos temos a concretização, a visualização. E falamos numa época onde já havia a caixinha mágica na casa de muitos.

Na madrugada de 26 de abril, uma nuvem de material radioativo atingiu a cidade de Chernobyl, na Ucrânia, alastrando-se depois a outras partes da União Soviética, nomeadamente à Rússia, Bielorrússia, e até ao Norte da Europa. Tudo isto aconteceu durante um teste de simulação onde se tentava perceber como a usina nuclear funcionava com pouca energia. O teste não correu como previsto e os engenheiros não conseguiram controlar mais a energia do núcleo. Sucede que um núcleo de 1000 toneladas vai pelos ares, ficando exposto e a arder durante 10 dias. De acordo com dados oficiais 28 pessoas morreram imediatamente e 30 ao longo dos anos. São dados oficiais disponibilizados pela antiga União Soviética.

Quando se dá o incêndio, denota-se a falta de preparação, o improviso e a negligência. Pripyat a cidade que acolhia os trabalhadores da usina foi evacuada apenas 36 horas depois da explosão, supostamente por apenas três dias. E só ao fim de 18 dias, quando a Suécia detetou radioatividade no ar é que a US falou para o mundo sobre o assunto!

Sim, estou a fazer uma mera descrição de fatos históricos, tal como a Wikipédia faria, mas sinceramente acho que um desastre com tanto impacto está muito pouco presente. Sou uma acérrima defensora de que temos de aprender com os erros do passado, por isso devemos guardar memória dos mesmos.

Ora, a história é falada em inglês, percebe-se a necessidade de internacionalização, mas os pormenores são da antiga US. Desde as matrículas à essência das personagens. Comenta-se que os Russos ficaram aborrecidos por serem os americanos a contar a história. Ora, o que se viu foi um desmistificar da imagem dos russos durões e robóticos. Vimos o sofrimento de um povo. Vimos dignidade na história.

A série não se focaliza no desastre. Quando inicia ele acontece logo nos primeiros minutos, e o espectador assistiu do lado de fora, e só no último episódio é que assistimos ao acidente no interior da usina.

O que a série retrata são os efeitos e as consequências da radiação.

Os efeitos e as consequências de um regime político focalizado na imagem.

Os efeitos e as consequências da manipulação da verdade.

Há sem dúvida uma Humanização e uma beleza ao longo de toda a série. A história em si, acredito que não tenha nada para se romantizar, apenas factos. Contudo, há pequenos momento que nos deliciam. A mim em particular tocaram-me a cena dos mineiros. Nus (literalmente) e crus cumpriram a sua missão, mas sem antes dar a entender que pretendiam apenas a verdade e ser reconhecidos por uma política que pela forma como se apresentou nada sabia da realidade dura dos mesmos. Uma classe que dá uma chapada de luva branca, preconizada num azul imaculado do fato que se tingiu de negro pelas mãos dos que se sacrificam, em prol da nação.

Depois temos Pavel, o menino que o desastre tornou homem. Ele integrou a missão de ter que abater todos os animais da zona. Cresceu ele, e nós! Vimos os efeitos de um conjunto de erros humanos a, mais uma vez, deixar marcas na natureza.

Vimos a humanização do político duro, Boris Shcherbina, o vice-presidente do conselho de ministros. Vimos um homem que fazia tudo pela imagem do regime e que aos poucos passa a fazer tudo pela verdade, tudo por aqueles que o acompanham. Ele é o que faz o jogo de cintura entre os meandros políticos que domina e a humanidade que o desastre lhe atira para os ombros. Vemos essa atuação no discurso para recrutar três mergulhadores que teriam de se voluntariar para mergulhar nas galerias inundadas, sob o reator danificado, e abrir uma válvula para drenar a água.

Temos de falar de Ulana Khomyuk, a física nuclear que procurou investigar a origem da explosão. No desastre é uma figura que nunca existiu. A própria atriz, Emily Watson, contou que Ulana era, na verdade, “uma amálgama dos cientistas que trabalharam no desastre”. Ela é o rosto de quem luta pela verdade científica, de quem batalha com um único propósito. A ciência saiu muito bem representada, sem dúvida!

Agora, Valery Legasov, o químico escolhido para integrar a equipa enviada para Chernobyl, e uma das personagens principais da série. É ele quem desenha as batalhas a travar, numa época em que se tentava não divulgar o acidente. O mundo não deveria saber do que se passava. Ele precisava de mais recursos, mas tinha de se limitar aos soviéticos e ao espírito dos “camaradas”. É a voz junto da autoridade, e à época ter uma voz que não ia de encontro ao que se pretendia ouvir era perigoso.

Depois temos os olhos do povo. São vários os momentos em que percebemos como o povo foi afetado. Aliás os flashbacks, são deliciosos na série. Vemos a evacuação difícil da idosa que tira o leite da vaca e temos a mulher do bombeiro que nos guia pelos pacientes queimados com as substâncias radioativas. Ficamos com a clara noção do que é a exposição à radiação: pele vermelha, queimaduras de radiação e queimaduras de vapor, nunca se viram com aquele grau de realismo.

Uma das cenas, que melhor caracteriza a série passa-se na ponte da cidade de Pripyat, onde é possível ver crianças brincar com o pó radioativo que caía do céu. A inocência, face a uma realidade brutal que se impõe. O fim de um viver tranquilo.

Esta série surge numa época onde as fake news nos invadem e nos condicionam e o que ela evidencia muito bem, são os efeitos nefastos de um controlo da verdade e da imagem. Como já referi sou das que defende que conservar memórias dos erros do passado é das melhores armas para se combater a repetição desses mesmo erros. Portanto estejamos atentos.

 

Nota sobre a autora

O meu nome é Inês Pina.

Sou uma marrona que não gosta de estudar, uma preguiçosa trabalhadora e uma fala-barato solitária.

 

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